quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O DELFIM




      AMOR DE PERDIÇÃO
     
      [Durante 48 longos anos Portugal fechou-se ao mundo, definhou. Num canto esquecido da Europa, arrastava-se um país afundado na sua estupidamente orgulhosa pequenez advinda da concepção totalitária de um governo que atropelava direitos e esquecia deveres para com o seu povo. Duas únicas portas para o exterior funcionavam ininterruptamente: aquela que nos levava até África onde decorria uma guerra fratricida que sequer soubemos como terminar, e uma outra cuja soleira era normalmente transposta galgando campos com a dor estampada no rosto, alma sofrida pelo avizinhar da saudade, e uma sacola cheia de nada carregada sobre os ombros atravessando rios e fugindo às autoridades em busca de uma nova esperança numa terra estranha, e que era a porta da emigração. Mas por cá ficavam outros, ficava um povo que exibia no olhar uma estranha dignidade. Um povo acostumado à submissão, a vergar-se ao poder dos grandes senhores. Os senhores donos das terras, os senhores que tudo podiam.]
     
      Senhores como Tomás Palma Bravo, o dono da Lagoa, da própria Gafeira. Ele, Palma Bravo, homem sem limites seduzido pelo perigo e igualmente senhor da noite lisboeta (não a de agora, mas aquela que se fazia com uma garrafa de Whisky ao largo e em que duvidosas eram outras senhoras porque as da noite nos bares eram decididamente putas) é também o senhor de «O Delfim», romance escrito pelo já desaparecido escritor José Cardoso Pires. E é ao mesmo tempo a centro de sedução de uma história que reflecte muita da alma ainda recente da nação portuguesa e a causa maior da trágica derrocada humana que esta encarna.
     
      Fernando Lopes, com a prestimosa colaboração de Vasco Pulido Valente que adaptou o romance para o cinema (argumento), conseguiu um assinalável feito neste seu trabalho. Não só fabricou um excelente filme como deu uma nova dimensão a uma relevante obra da nossa literatura. O filme é espantoso na recriação atmosférica de um passado tão fresco na nossa história. É mágica e rigorosa a perfeição de identidade do filme enquanto retrato sociológico da época. Uma época em que Salazar expirava, uma época de fantasmas onde havia até uma brigada oficial de exorcistas. E os fantasmas pairavam sobre a lagoa da Gafeira em poética metáfora. Vagueavam sobre as águas paradas envoltas no nevoeiro e nas sombras do arvoredo circundante, captadas em cortante tristeza pela câmara de Lopes. «O Delfim» não é um filme de atmosferas sonoras ou visuais, é um filme de latente atmosfera humana individualizada mas enraizada no pulsar próprio de uma nação. É, como alguém disse um dia mas em referência ao romance de Cardoso Pires, a história de um crime cuja arma assassina é o amor.
     
      Fantástico o trabalho de composição das personagens. O observador passivo, a mulher alvo do desejo dos homens da terra mas que não pronuncia palavra, o criado maneta de tão errónea apreciação por parte do seu patrão – do seu dono, o cauteleiro que simboliza a voz revoltada de um povo amarrado na sua própria impotência.
     
      Mas é em Palma Bravo e em Maria das Mercês, que reside o âmago de tudo aquilo que despoleta a euforia do espectador rendido ao filme. Ele é um homem que julga ter nascido para os prazeres da vida, mas, crença maior, acredita sobretudo que é a vida que lhe deve fornecer todos esses prazeres sem qualquer partilha. De fina educação e natureza delicada, dá-se ao luxo de praticar a rudeza. Ela é uma mulher como o eram na altura as mulheres de família. Criadas para serem esposas e mães. Uma mulher atordoada pelo drama do abandono. Uma mulher de extrema sensualidade, uma mulher reprimida. E estas são duas figuras que fazem parte da nossa história. Uma que se passeava garbosa, a outra recolhida entre quatro paredes.
     
      Acredito que Fernando Lopes não poderia ter escolhido melhores actores para protagonizarem as referidas personagens. Enquanto Alexandra Lencastre é a personificação física da criação literária que é Maria das Mercês, Rogério Samora deve ter conseguido com a interpretação do marialva Tomás Palma Bravo o papel da sua vida.
     
      Por tudo isto, «O Delfim» de Fernando Lopes é um objecto fílmico revelador da ironia que a vida encerra em si mesma e que posteriormente se despoleta em forma de tragédia humana. Uma excelente transcrição de uma época específica da nossa portugalidade. É ainda um filme absolutamente meticuloso na forma como captou as subtilezas e conjugou os acessórios fundamentais e capazes de nos transportar até essa mesma época. Em suma, «O Delfim» é um claro exemplo de uma vertente a explorar pelo cinema português no futuro. E se isso for conseguido com acutilância creio que é possível a tão desejável harmonia do cinema português com o espectador. Porque este cinema trabalha as memórias mais recônditas de nós, portugueses, como povo. E ainda que memórias feitas de muita imperfeição, um povo de identidade muito própria. Quanto a Tomás Palma Bravo, “Silêncio que está em causa a honra de um homem; e a honra de um homem é para ser respeitada!” (Tomás Palma Bravo, dixit).

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