quarta-feira, 13 de outubro de 2010

FRIDA








      A VIDA COMO PRETEXTO PARA A ARTE
     
      A vida dela dava um filme. E deu. Aliás, para ser mais preciso, “Frida”, da realizadora Julie Taymor – uma cineasta de quem recebêramos, em 1999, “Titus” –, é já a segunda incursão do cinema na sua vida. A primeira acontecera em 1984, na película com o título “Frida, Naturaleza Viva”, sob a direcção do mexicano Paul Leduc . Falamos, é claro, da pintora mexicana Frida Kahlo, uma mulher cujo dramático e apaixonante percurso de vida se misturou inexoravelmente com o da sua arte. De produção americana e canadiana é, todavia, sobre a indubitável faceta de complexidade da sua personalidade que incidem indignadas reacções ao filme no país de origem da pintora. Porque, como analisaremos mais à frente, o filme privilegiou sempre o lado novelesco da vida de Frida, abdicando de uma mais rigorosa abordagem histórica, é certo, mas, sobretudo, fazendo da personagem da artista alguém afável esquecendo reiteradamente como o seu sofrimento lhe provocava a ira e a intranquilidade. Para além disso, essa amargura que a consumia foi preponderante para o evoluir da sua própria obra.
     
      A também mexicana Salma Hayek é a actriz que corporiza Frida Kahlo na fita. Hayek conseguiu o papel depois de muito porfiar já que essa era uma intenção que lhe vinha de há muito, facto que explica igualmente a sua dupla contribuição para o filme: ela é também produtora da obra. Seduzida desde sempre pela vida da sua compatriota, não apenas pelo seu trabalho artístico mas também muito pela forma corajosa como viveu, a bela actriz precisou no entanto de um apurado trabalho de caracterização para, aliado ao seu bom desempenho dramático, se tornar numa credível Frida. Apesar de ter sido uma mulher revolucionária tanto no campo artístico como no político e ainda, porque não referi-lo, no capítulo sexual, grande parte da vida daquela que é hoje a principal referência feminina da pintura latino-americana foi marcada pela dor. Pela dor de um corpo enfermo e de uma alma agonizante. Mas é exactamente por assim ter sido, e por ter feito o que fez, que se prova a sua força. E o filme, que até começa evidenciando essa mesma força quando, deitada, doente, a personagem de Frida exorta a que se tenha cuidado porque aquele cadáver ainda respirava, acaba no seu evoluir por negligenciar a vertente mais trágica de uma vida que ousou decorrer de um modo tão rico e esplendoroso. Um esplendor fascinante ao olhar distante e alheio porque terá sido constantemente temperado pela dor?
     
      Em 1925, Frida sofreria um violentíssimo acidente de autocarro que a marcaria para a vida. Durante a estadia no hospital descobre a arte de pintar e será ela, a pintura, que a irá catapultar para a história. E, em boa verdade, para aquilo que mais interessa ao enredo de “Frida”, o filme: a sua relação com outro dos maiores nomes da pintura mexicana, o mítico Diego Rivera, protagonizado na fita por Alfred Molina. Curiosamente, pese embora se tenha preferencialmente situado na ligação matrimonial de ambos, é precisamente neste ponto que o filme falha o que seria desejável: a abordagem à complexidade de uma mente que não se regia por uma atitude simplista perante a vida. E o que o filme chega a sugerir, ainda que de forma subliminar, é que em grande parte Frida teria sido uma vítima do comportamento do seu marido. Isto é, porque Rivera era adúltero seria igualmente no adultério que ela, Frida, a sua mulher, encontraria o escape para a dor provocada pela situação. Nada mais errado. Parecendo viver orientada por um forte sentido de fatalidade como o título dado a um dos seus mais famosos quadros mais tarde faria supor – “Sin Esperanza”, de 1945 –, aquela mulher teimava em agarrar a vida. São famosas as suas ligações amorosas com mulheres, das quais o filme destaca a ocorrida com Tina Modotti (Ashley Judd), o que prova o esmagamento que a sua ânsia de amor e de paixão impunha a qualquer impulso menor causado por terceiros. Frida Kahlo vivia como se sentisse que a vida ameaçava fugir-lhe a cada momento. E abraçava-a, à vida, e a cada uma das possibilidades de felicidade que esta lhe oferecia. E não me parece que a película consiga esclarecer esta importante faceta de uma mulher que fazia das fraquezas a sua força.
     
      Pela fita passeiam-se ainda nomes importantes do cinema actual, como o do australiano Geoffrey Rush. Rush, motivado até pelo princípio novelesco que desde o início norteia a narrativa, veste a pele de Leon Trotski. Este, exilado na cidade do México depois de excomungado pelo regime vigente no seu país de origem, viria a tornar-se íntimo de Rivera e Kahlo. Através da interpretação muito conseguida de Geoffrey Rush, que permite evidenciar ao espectador o valor intelectual de outra figura genial da nossa história global, e na relação da sua personagem com a de Frida, pode perceber-se algo importante: como aquela mulher se rendia ao amor e à vida por razões que pouco tinham a ver com debilidades emocionais mas antes com o preenchimento de um vazio que, quando consumado, a libertavam para a dor. Difícil de perceber? Não. Era como se invariavelmente buscasse o equilíbrio entre o prazer e o sofrimento. Mas um equilíbrio que se duvida alguma vez tenha almejado atingir.
     
      Conclui-se, portanto, que «Frida» é um filme demasiado leve. Muito mais que aquilo que deveria. Esse facto, leva-nos a duas constatações imediatas: que se terão desaproveitado as ricas nuances sobre a vida de uma mulher única e que o verdadeiro filme sobre Frida Kahlo ficou por se fazer. No entanto, estamos na presença de um filme agradável e de grande força visual. Sendo a pintura de Kahlo muito marcada pelo surrealismo e a sua figura declaradamente pictórica, até pela genuinidade com que abraçou a cultura do seu país, é relevante o trabalho de realização de Julie Taymor na conjugação destes factores com as técnicas cinematográficas. E essa sim, constituiu uma verdadeira e muito adequada homenagem à pintora. Ela uma mulher guerreira, vencedora de muitas batalhas e de quem não se acredita que alguma vez tenha perdido a guerra. Morreria em 1954, aos 47 anos, abundantemente amputada.
     

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