quarta-feira, 13 de outubro de 2010

I AM SAM - A FORÇA DO AMOR





      ISTO É CINEMA
     
      Em «I Am Sam / A Força do Amor», deve, antes de qualquer outra reacção, destacar-se a magistralidade do retrato de um homem jovem indelevelmente marcado por uma (in)capacidade intelectual estimada num nível próximo dos 7 anos de idade. A razão maior para essa perfeição exemplificativa (e demonstrativa) daquilo que pode resultar da imperfeição humana cingida à figura de um de nós, é permitida pelo superior desempenho de um actor que desde há muito vem dando provas das suas imensas qualidades dramáticas: Sean Penn. Efectivamente, Penn, do qual continuo a guardar com nostalgia – entre tantas outras das suas prestações como actor – a sua fabulosa e, de certa forma, incompreendida corporização de um neurótico cantor de Jazz no filme «Sweet and Lowdown», de Woody Allen, nunca permite que o retardamento mental de Sam Dawson o confunda, ao homem, com uma espécie de bobo social. Facto, aliás, que resultaria muito provável no caso de exagerados e inadequados trejeitos e maneirismos muitas vezes colados ao género por inconsequentes facilitismos. Mas não, isso nunca sucede e é mesmo quase incrível a dignidade que, aos poucos, passo a passo, se vai colando à personagem e atinge uma dimensão ímpar sustentada na muito conseguida credibilidade das acções empreendidas.
     
      No entanto, e apesar de na forma como todo o edifício fílmico foi idealizado e construído se perceber que os seus autores nunca perderam de vista quais os riscos que corriam com semelhante narrativa, «I Am Sam / A Força do Amor», é o típico filme em que para podermos usufruir da sua intensa emocionalidade devemos alhear-nos de determinados detalhes da sua racionalidade. Cinjamo-nos à sua narrativa para que se possa desenvolver um pouco mais a ideia atrás avançada: Sam Dawson é um pai ainda jovem que sofre de retardamento mental e se vê repentinamente a braços com a tarefa de ter de criar sozinho, desde que esta nasce, a sua pequena filha Lucy (Dakota Fanning). Os problemas e as dúvidas sobre as suas capacidades como pai, colocados pelo competente organismo do estado, começam apenas aquando da idade dos 7 anos da pequena, idade essa que é justamente a sua estimada idade intelectual. Olhando então para a base da narrativa, somos obrigados a concluir que a forma como um homem com estas peculiares e inibidoras características de personalidade chegou a pai resulta de inatacáveis factos do argumento, factos esses a serem descobertos individualmente no filme. Por outro lado, num filme em que se procura mostrar o retrato sofrido da busca da prática da paternidade por parte de um homem cujas aparentes aptidões para a função se consubstanciam unicamente no amor que nutre pela filha, é difícil não se cair na tentação da manipulação argumentativa. E esse, Jessie Nelson (realizadora e co-argumentista do filme) sabia-o muito bem, prova-o aliás com competência, seria um trunfo a explorar pelos potenciais detractores do filme. E a verdade é que o fantasma da manipulação do espectador chega a ensombrar a película. Mas, percebemos depois, esse pormenor só serve para dar consistência criativa ao argumento dotando-o em certa medida de anticorpos que repelem as já referidas possíveis acusações de manipulação. E isso foi conseguido através de uma espécie de recusa de alienação da razão, recusa essa objectivada na resolução do juiz. Apesar de tudo isso, dizia há pouco, necessitamos não lembrar que o argumento oculta parte fundamental da vida da criança onde, sabemo-lo, são igualmente fundamentais as capacidades dos pais e onde o amor pelos filhos é apenas mais um (imprescindível) factor de equilíbrio na sua educação. Mas, acredito, e aqui reside talvez o pormenor mais importante e ao mesmo tempo indiciador da minha própria tristeza ao avaliá-lo, esta é uma história desfasada da nossa realidade social e humana. Que quero eu dizer com isto? Apenas que, olhando a forma como a história se desenvolve e acaba por se resolver, a vida não é tal qual ela nos surge na tela. A vida é, infelizmente, muito mais cruel.
     
      Os destaques finais. Destaque primeiro para as actrizes deste filme: Michelle Pfeiffer, uma advogada segura e determinada, mas uma mulher tão bela quanto infeliz e frustrada familiarmente; Dakota Flanning, uma criança brilhante e muito equilibrada tendo em conta a corda bamba em que se move e que é a sua vida; Dianne West, o triste brilho de um olhar que revela o isolamento de alguém na busca solitária para uma felicidade impossível; Laura Dern, uma presença fugaz mas fortíssima porquanto demonstra as verdadeiras possibilidades que se abrem quando aquilo de que se trata é do verdadeiro amor. Destaque segundo para a banda sonora deste filme: uma das mais fantásticas dos últimos tempos e adequada não apenas ao espírito do filme como bem justificada pela sua estrutura dramática. Destaque terceiro e derradeiro para o próprio filme: para o positivismo que ele transporta, mas, sobretudo, para a forma como consegue discernir razão de emoção e demonstrar que em conjunto com uma mente limitada pode evoluir uma alma enorme; uma alma que através de enorme capacidade de sentir racionaliza afinal como poucos a difícil prática do amor. Mas, no restante, suspeitamos amargamente que a «I Am Sam» não seja permitida mais que a sua própria dimensão existencial e, essa, resume-se simplesmente ao filme que é, ao cinema.

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