quarta-feira, 13 de outubro de 2010

IRREVERSÍVEL




 

      TERAPIA DO CHOQUE
     
      Alex (Monica Belluci) é uma mulher jovem e extremadamente atraente que vai a uma festa acompanhada do seu então namorado Marcus (Vincent Cassel), e do anterior companheiro Pierre (Albert Dupontel). Entretanto, Alex discute com Marcus e decide regressar sozinha a casa. Para fugir ao trânsito intenso de uma avenida, envereda por um escurecido túnel para peões onde é violada e violentamente espancada. Marcus, ao saber do ocorrido, corre perdidamente atrás da desejada vingança. Pierre acompanha-o procurando levá-lo, aparentemente, à razão. Simples, banal e demasiadamente visto? É claro que sim. Mas, atenção, é exactamente a partir dessa clareza de simplicidade de um argumento onde até os diálogos parecem saídos da improvisação espontânea dos actores, que começa a construir-se o espantoso filme do realizador Gaspar Noé que é igualmente responsável pela escrita do argumento. Numa narrativa que se desenvolve às avessas, isto é, do fim para o princípio da trama que a suporta, é absolutamente brilhante e muito bem justificado o exercício de estilo que é imprimido pelo realizador a este seu filme.
     
      Diga-se antes de mais: «Irreversível» é um filme difícil, tenebroso mesmo. Mas, olhado de outra forma, é obrigatório reconhecer-se que nasce e se apoia num exercício cinematográfico inatacável e conceptualmente brilhante. E que, continuando nesse outro olhar, se os elementos introduzidos na narrativa e que formam a vertente nuclear da trama não só chocam e aturdem como se aproximam perigosamente dos limites do sórdido, a verdade é que para aqueles que ousem absorver o que nele se percebe nas entrelinhas, «Irreversível» não deixará de lhes incutir a sua força. A sua singela mas importante mensagem ainda que chegada até si de modo tão horrendo, tão peculiar e complexo, eu diria. Explorando vertentes ligadas aos sentimentos mais primários do ser humano, evidenciando até o modo como estes podem transfigurar alguém detentor de uma bem formada personalidade – neste particular observe-se com atenção o percurso do ex-marido de Alex, a narrativa mergulha num universo de insustentável obscuridade vivencial dominado por travestis e por simples homossexuais todos eles prisioneiros de um modo de vida ligado à pornografia mais obscena e deplorável. Para este verdadeiro calvário a que o espectador é sujeito muito contribui a fotografia sombria com que o filme se inicia. Uma fotografia que vai ganhando cor e vivacidade à medida que a fita progride para terminar numa ambiência verdadeiramente celestial. Ou será que esse final, que em boa verdade é o início da estória, não será pura e simplesmente uma oportunidade de escolha de rumos – ou de demonstrar que pode existir essa escolha nas nossas vidas – quando sabemos quão catastrófico pode revelar-se o futuro próximo?
     
      A par da proeza de transfigurar por completo um argumento banal num filme incontornável para quem não receie confrontar-se com o lado mais escuro das relações entre os homens, ame-se ou deteste-se o filme, fale-se da fantástica direcção de actores. Todos os actores, mas essencialmente Belucci e Cassel, são sublimes na interpretação das intenções artísticas do cineasta para a sua obra. E, noutra vertente, se a exploração de uma certa dimensão existencial ligada ao sexo e ao desejo mórbido pelo corpo do outro são uma realidade necessária, parecem-me desadequadas algumas acusações de que esta é uma obra voyeurista. Ou coisa que o valha. Inclusivamente em questões reprováveis ligadas à própria essência do ser humano que sabemos existirem, como será exemplo adequado o facto de alguém poder retirar alguma felicidade da desgraça alheia, a estrutura em que tudo se desenvolve não permite esse gozo comezinho. Porque cronologicamente invertida a desgraça aparenta terminar em suave idílio.
     
      Para finalizar, se Gaspar Noé optou por fazer um filme que, pela sua orgânica argumental, acaba mergulhado na acusação e na polémica, porque não dar o benefício da dúvida ao realizador e tentar perceber-se o que pode estar por detrás da terrível exposição de violência? Talvez tenha até sido esse o motivo que levou Cassel e Belluci a aceitarem o desafio de Noé. Talvez, repita-se, a convicção de que o seu trabalho pudesse abanar muitas consciências adormecidas e, no mínimo, confrontá-las com realidades que recusamos acreditar que existem, tivesse sido a pedra de toque final para aceitarem fazer um filme com estas características. Ao espectador compete aceitar um desafio menor: apenas acompanhar a evolução redentora, porque desenvolvida de trás para afrente, dos moribundos.

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