terça-feira, 12 de outubro de 2010

A JANELA EM FRENTE

   




      UMA JANELA ABERTA, UM OLHAR SOBRE OS SONHOS
     
      Pelas mãos da Atalanta Filmes, chega até nós mais uma daquelas obras plenas de maturidade. Um estado adulto comprovado pelo olhar intenso e dedicado que é lançado sobre a vida, pelo modo como a câmara se adensa na dificuldade que o ser humano experimenta para conseguir ser fiel aos seus sentimentos sem descurar aquilo que a sociedade espera de si. Dirigido pelo cineasta turco-italiano Ferzan Ozpetek, que aqui realiza a sua quarta longa-metragem depois de ter estudado cinema em Roma e ter sido assistente de realização – nomeadamente de Maurizio Ponzi, este filme tem ainda a curiosidade suplementar de ter marcado o final da brilhante carreira de um dos mais conceituados actores italianos: Massimo Girotti morreria de ataque de coração a 5 de Janeiro de 2003, aos 85 anos, sem ter logrado assistir à estreia do filme. Pode no entanto dizer-se desde logo que, através da sua interpretação sóbria mas reveladora de uma amargura que só um grande amor não consolidado poderia provocar, Girotti fechou com chave de ouro um brilhante percurso de actor em que a sua imagem de “perfeito homem italiano” foi explorada até à exaustão.
     
      O filme inicia-se com uma sequência que nos transporta até à Roma do ano de 1943, quando acometida pelas tropas aliadas a Sul os nazis invadem a Itália pelo Norte e perseguem e matam quantos judeus lhes foi possível. Mas isso, o contexto histórico, só se perceberá mais tarde. Depois de uma luta fatal entre dois homens no interior de uma padaria, a narrativa viaja no tempo para se situar na Roma contemporânea. Giovanna (Giovanna Mezzogiorno) e Filippo (Filippo Negro), um ainda jovem casal com dois filhos e nove anos de casamento, deparam com um homem velho atacado de amnésia. Mais tarde, descobrirão que o nome que o idoso balbucia (Simone) não é afinal o seu verdadeiro nome. Que esse é, na realidade, Davide (Massimo Girotti). Entretanto, Davide passa algumas noites em sua casa e isso não só provoca com que Giovanna se aproxime de Lorenzo (Raoul Bova), o vizinho a quem noite após noite contempla arrebatada na janela em frente da sua, como obriga a que venham ao de cima todas as frustrações saídas da rotina de um casal. Aos poucos e poucos, ao mesmo tempo que vai descobrindo os contornos do drama de Davide, Giovanna sente-se impulsionada a correr para a vida que sempre imaginara para si e agora desejava mais que nunca. Mas quando se vê limitada pelas convenções sociais que a levam a pensar primeiro nos outros e só depois em si, a jovem percebe que afinal a sua vida tem muito em comum com a do idoso que acolhera no seu lar.
     
      Premiado com cinco Donatellos, os mais prestigiados prémios do cinema italiano, «La Finestra di Fronte» é não só uma obra que reflecte sentimentos e desperta emoções como se revela um importante documento sobre a problemática da vida afectiva ‘versus’ sociedade dominante. Porque não poucas são as vezes em que ela – a sociedade – obriga os seus membros a seguirem um rumo oposto àquilo por que tudo neles anseia e exaspera. E quando assim não é o castigo é a intolerância, por vezes, e a infelicidade, sempre. A partir de uma viagem até um período negro da história de Itália – Mussolini, a 2ª Grande Guerra… –, e para além desses efeitos históricos, o argumento, escrito por Ozpetek em parceria com Gianni Romoli, debate questões como o casamento, a homossexualidade e a renúncia que certas opções que tomamos nos provocam, nomeadamente no capítulo amoroso e no profissional. E não se pense que é linear a realização de Ozpetek. Com o edificar da narrativa que se materializa numa espiral de incerteza quanto às motivações das personagens, nomeadamente aquela que Girotti defendeu dando-lhe uma áurea de mágoa e tristeza, é através das memórias do velho homem que nos são apresentadas em ‘flashback’ que o espectador se dá conta dos verdadeiros contornos do drama. Diria mesmo que o modelo encontrado para concretizar este objectivo da realização, pela sua simplicidade e eficiência, pode muito bem servir de exemplo para outras produções muito mais ambiciosas que esta co-produção internacional que também teve participação portuguesa.
     
      Referido que foi anteriormente o trabalho de Massimo Girotti, ressalve-se ainda a qualidade do restante elenco onde o elemento mais forte se situou em Giovanna Mezzogiorno e o “boneco” menos conseguido, tendo até em conta as elevadas ambições com que foi delineado, se verificou na interpretação de Lorenzo por Raoul Bova. Em Mezzogiorno, uma actriz cujo trabalho pudéramos apreciar ainda recentemente nas nossas salas com o filme «O Último Beijo» (2001), para além das suas capacidades dramáticas é de enaltecer a sua beleza tão próxima de nós, nunca distante. Que quero eu dizer com isto? Apenas que Giovanna Mezzogiorno é uma mulher de uma beleza perfeitamente natural, nada etérea e quimérica, mas daquelas mulheres com quem deparamos na rua e cujo simples olhar tem o condão de nos melhorar o dia. E isso, estas características pessoais, encaixam como uma luva no cinema realista e reflexivo de Ferzan Ozpetek. Um cinema, neste caso particular, onde as convulsões da história – de um país e de um homem, se reflectem nas desordens interiores que abalam a vida de uma mulher. Trazendo a vida comum ao cinema, «A Janela em Frente» é um filme onde também o cinema ganha vida.


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