terça-feira, 12 de outubro de 2010

A PASSAGEM DA NOITE




      LUTANDO CONTRA O DESTINO
     
      Animem-se os nostálgicos do Bom cinema português. Depois de «O Delfim», de Fernando Lopes, obra pertencente à casta de 2002, eis que estreia nas salas de cinema uma obra de valor cinematográfico análogo embora erigida sob um contexto artístico diametralmente oposto. Isto porque se o filme de Lopes se erguia em poderosa metáfora a um certo Portugal do passado, «A Passagem da Noite» (é este o filme em questão), de Luís Filipe Rocha, cresceu enquanto retrato duro e prático de um Portugal contemporâneo, suburbano e adolescente. Dito de outro modo, Luís Filipe Rocha filma o caso de uma jovem de 17 anos que sobrevive a um cruel atropelo do destino, recusando-se a ser arrastada pela vida fora por um estigma que certamente lhe seria imposto pela sociedade. Jovem essa que retira do desespero que a invade a coragem de como age. Uma história, acrescente-se, passada nos nossos dias algures nos subúrbios problemáticos da grande cidade.
     
      Aquele era, à partida, um dia que Mariana (Leonor Seixas) iria relembrar pelos sentimentos contraditórios que nele seriam evocados. Era o dia do funeral de um amigo toxicodependente e era também o dia dos anos do pai (José Pompeu). No entanto, Mariana não poderia nunca prever aquilo que de muito gravoso estava para lhe suceder: a violação na praia por um toxicodependente. Mas desse acontecimento horrível iria ainda resultar uma gravidez que ela vai ocultar de todos. Dos pais, que são de uma normalidade tão medianamente clássica como assustadora, e do namorado, com quem termina mesmo o namoro. Mas nesta sua transição da adolescência para a idade adulta, Mariana não estará sozinha. Acompanham-na uma prostituta (Maria Rueff) terna e compreensiva que finge não perceber o que lhe acontecera e segue aconselhando-a como se esta fosse apenas a intermediária da aflição, e um Inspector da Judiciária (João Ricardo), carinhoso e protector. Mas era, apesar disso, obscuro o seu futuro imediato tal como sombrio era o túnel que a levara até à praia fatídica. Mariana embrenhava-se então na sua passagem da noite.
     
      É o próprio Luís Filipe Rocha quem afirma que se fazem poucos filmes sobre a adolescência em Portugal. Estamos de acordo mas acrescentamos um dado que serve igualmente de elogio ao seu ‘modus operandi´ neste filme. É que o cinema nele presente marca uma viragem que se tem mostrado apenas esporádica e circunstancial mas que precisa tornar-se uma aposta essencial de todo o cinema português. Refiro-me ao facto desta realização visar como objectivo patente em todas as suas vertentes, conceptuais e artísticas, contar uma história. Mais do que isso, através da sua estética naturalista e directa, procura aproximar essa história do espectador porque os valores dramáticos que a norteiam são, em última análise, parte afectiva desse mesmo espectador. Ainda assim, saliente-se que esse esforço foi conseguido fugindo ao esquema de melodrama banal de resolução simplista e de fácil apreensão para quem assista à película. Até porque a sua ‘story line’ não deve ser nunca citada como um exemplo de conduta a seguir. Trata-se apenas de uma história da vida onde o único simulacro da realidade é personalizado pela personagem central da trama ao optar pelo sacrifício de esconder o seu drama. A Mariana apenas interessa prosseguir vivendo como se todo o sucedido não passasse de um pesadelo que tivera. Para isso ela não poderia sequer aceitar a ajuda da justiça. Porque a justiça executa-se através do Direito. E para o Direito o ser humano surge como mero determinismo figurativo para aquilo que verdadeiramente interessa: encontrar um culpado, descobrir uma vítima. E ela não queria, não podia, ser essa vítima.
     
      Destaque final para três actores que dão vida ao filme. Para a jovem Leonor Seixas (que corporiza Mariana), hoje um (lindo) rosto já conhecido das telenovelas mas que ainda o não era tanto quando rodou o filme; para Maria Rueff (a afável prostituta), aqui num registo em clara contraposição com o de comediante que habitualmente nos entra casa dentro; e, por último, saliente-se a interpretação sem mácula de João Ricardo (o preocupado e tutelar Inspector da PJ). Uma agradável surpresa, no mínimo, este actor. E pese embora todos os rostos muito conhecidos da televisão conjugados com a já referida estética naturalista e clara, só por leviandade se poderá associar esta obra a um qualquer subgénero televisivo. Não tenhamos dúvidas, «A Passagem da Noite» é cinema. E do bom.

Sem comentários: