terça-feira, 12 de outubro de 2010

A PIANISTA




      A DESAFINAÇÃO DE UMA PROFESSORA DE MÚSICA
     
      «A Pianista» é um filme que segue o percurso de um cineasta em torno de um universo cinematográfico que se constrói a partir da pretendida incomodidade do espectador. Pode mesmo dizer-se que o austríaco Michael Haneke é não apenas um lídimo representante do cinema europeu naquilo que este tem de melhor e de pior - consoante a individualidade de cada um -, como se revela um brilhante artífice no que também este tem de mais incontornável: a escalpelização do bizarro, a compulsiva abordagem do socialmente perturbador, o abanar da passiva tranquilidade de cada um de nós através da exposição de histórias algo difíceis de digerir.
     
      Nesta sua obra envolta em alguma controvérsia, de pouco se pode acusar Haneke. Provavelmente seremos obrigados a substituir a expressão de uma possível sensualidade pelo erotismo sofrido que nos é dado observar. E é também certo que onde poderíamos falar de amor somos obrigados a reconhecer a incapacidade de alguém em o sentir. Mas estas foram opções de uma atmosfera densa por que Haneke optou captar no manejo da câmara. O austríaco foi frio sim, foi igualmente inclemente. Mas poderia a narrativa de um delírio amoroso que entra numa negativa espiral dramática a partir da incompatibilidade com o outro processar-se de forma distinta?
     
      O argumento do filme baseia-se no livro da escritora austríaca Elfriede Jelinek (contendo inclusive alguns evidentes paralelismos com o seu próprio percurso de vida), uma escritora, aliás - simples curiosidade -, de mal com as tendências políticas que ocupam o poder no seu país. Relata a história de uma mulher de cerca de 40 anos, professora de música do Conservatório de Viena. Erika Kohut (um desempenho de Isabelle Hupert absolutamente brilhante na forma como é por si corporizada a personagem) reparte os seus dias entre o trabalho em aulas de música administradas aos alunos de forma bastante rigorosa e distante, saciando posteriormente a sua reprimida sexualidade num latente “voyeurismo” em sessões pornográficas, “peep-shows” e observando casais a fazerem sexo dentro dos automóveis num “drive-in”, e ainda e finalmente pela vivência caseira com uma velha mãe que a vigia e oprime.
     
      O mundo de Erika descamba a partir do momento em que Walter (um Benoît Magimel igualmente espantoso) um seu aluno, sedutor e exibicionista das qualidades que se reconhece a si mesmo, a resolve conquistar. Erika, que tudo tentou de forma a não perder o controlo de situações que sabia existirem em si de difícil aceitação ao olhar alheio, acaba então por se afundar na armadilha que se constitui nos seus tão irreprimíveis quanto excêntricos desejos sexuais.
     
      «A Pianista» é pois, e acima de qualquer outra característica, um filme para adultos. E não adultos em função da idade. Adultos em função da maturidade, da capacidade que se tem em compreender, da contenção que se possui para não acusar. Porque este é um filme que requer uma reflexão séria e daí, como provável sugestão, talvez o prolongamento de algumas sequências na película em matéria de contemplação. O filme solicita também uma superlativa dose de tolerância para algo que, como meros cidadãos comuns sem a pretensão analítico – científica de perspectiva freudiana, facilmente reputaremos como um desvio de personalidade (sexual, no caso). Porque Erika Kohut, mulher culta e aparentemente exemplar, demonstrava afinal a sua humanidade nas suas próprias imperfeições e nos desequilíbrios emocionais que a perturbavam. Porque esta improvável história de amor se arruinou porquanto Erika amava sobretudo a dor, sentia prazer no sofrimento e fazia depender da crueldade a sua felicidade.

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