domingo, 31 de outubro de 2010

Planícies do Sul



[Nevoeiro, Alentejo - José Boldt, 2005]






[Eu teria onze, doze anos; na altura vivia em casa dos meus avós que me impunham as nove e trinta da noite como hora de deitar. Muitas vezes, sem sono, escapulia-me silenciosamente da minha cama e ficava escondido por detrás de um sofá ouvindo-os falar baixinho ao ritmo do crepitar poético da fogueira acesa na enorme lareira lá de casa. Esta é uma das histórias que era suposto eu não ter ouvido. Mas ouvi. E não resisto a contá-la aqui.]





Os factos parecem retirados de uma obra de Pier Paolo Pasolini, mas, infelizmente, não são. A história, como tantas outras abafada pelo regime de então, não chegou sequer a abalar a comunidade da época. Ainda para mais uma comunidade fechada sobre si cujos costumes, obsoletos, sobreviviam suportados num regime hipócrita, autista e absolutista. Mas num mundo paralelo ao nosso vive ainda, provavelmente, Maria de Vasconcelos. Terá 26 anos desde 1963, festejados na véspera de ser soterrada num túmulo de um cemitério numa pequena aldeia alentejana. No dia do seu funeral as mulheres da pequena povoação do distrito de Beja ficaram em casa benzendo-se e balbuciando o desdém com que brindavam Maria em vida. Alguns maridos também por lá se ficaram quedos e mudos, acobardados. Foram poucos os que acompanharam o corpo e nem o Dr. Frederico foi visto por lá. Nem poderia. O padre da paróquia, fiel aos desígnios do Santo Padre, permaneceu na sacristia durante a singela cerimónia em que supostamente os desta vida se despediam de quem partia. Diz quem conheceu de perto o Padre Soares, que viveu momentos de incerteza, de desespero e muita angústia por perceber que atraiçoava o espírito de um sentimento maior que a mera simpatia por uma jovem e linda mulher cujo único pecado era ter amado fora das regras sociais. Por esse crime hediondo, Maria fora condenada em vida e a sua morte violenta, alegadamente acidental, dera-se devido à queda do alto de uma enorme pedreira existente na zona. Rapidamente a estranha morte foi vista como um sacrifício sublime em nome de um amor que quis permanecesse consigo já que não lho era permitido em vida. Poético, sem dúvida, mas um absurdo.



Maria era natural de Lisboa, filha de pais abastados e bem quistos na sociedade salazarista da época. E também eles a haviam abandonado. Fora para o Alentejo obrigada pelo pai na tentativa de a fazer esquecer um amor indigno da posição social da família. Durante dois anos exercera o cargo de professora na escola primária da terra. E tudo correra bem até que se tornara pública a nova paixão de Maria, Frederico, o jovem e recém-casado médico da aldeia. Uma paixão, um amor, que virou infortúnio. Fora numa tarde de Verão, as mãos nas mãos, os lábios nos lábios, os dois corpos encostados, perigosamente encostados em união numa saia entreaberta para que se vivesse a euforia do amor e, ao fundo, escondido numa sarjeta, o olhar imundo que deu lugar à voz infame que trespassou a aldeia como um ferro em brasa a cravar-se na carne de gente ociosa à espera de festejar a mais pequena desgraça alheia. Daí até à deflagração do escândalo, aos insultos, aos filhos a deixarem de frequentar a pequena escola, aos dedos apontados em riste em forma de setas envenenadas, fora um passo. E Maria morria aos poucos vítima do seu amor pela vida. Até que foi encontrada, vestido branco sujo de terra e de sangue como suja estava a população que vergonhosamente a obrigara à expiação. Levada para a aldeia, o seu corpo por lá ficou, despejado na terra ao romper do dia seguinte numa belíssima planície alentejana então seca pela crueza dos tempos e das mentalidades.






Sem comentários: