quinta-feira, 14 de outubro de 2010

PORTO DA MINHA INFÂNCIA


      O HOMEM E A SUA CIDADE
     
      Manoel de Oliveira considera «Porto da Minha Infância» um documentário. Um objecto fílmico que foi convidado a realizar pelo produtor e amigo Paulo Branco por encomenda da «Porto 2001 Capital Europeia da Cultura». Mas o que se conclui é que aquilo que poderia não ter passado de um simples captar das imagens mais ilustradoras da bela cidade do Porto, o velho realizador transforma em importante memorial de si mesmo, da sua cidade. Oliveira, cuja voz off narra com sentimento os variados locais e acontecimentos mais profundos do Porto da sua meninice, capta com contida emoção a vertigem do tempo fugitivo, do tempo interminável cuja marca se reflecte no moldar da cidade e no das suas gentes. Prova que um homem não pode viver amputado do seu passado, antes deve revivê-lo intimamente com segurança e orgulho. E, assim, ele mesmo vai negando aos nossos olhos a sua própria consideração. Ele, Manoel de Oliveira, o cineasta, transforma-nos em espectadores da sua própria vida, faz-nos olhar a si, Manoel de Oliveira, o homem, o filho da cidade do Porto. E do documentário que se quis vai-se construindo a poesia que se sente.
     
      Através das imagens escolhidas por Oliveira somos levados até às ondas do mar, ao Douro que a ele se entrega. Lá no cimo, em tempos altaneira sobre a cidade, residem os restos daquela que foi a casa onde nasceu. E onde morreu seu pai. Depois Oliveira filma o seu crescimento, a sua integração na vida e na cidade. Oferece-nos a nostalgia arquitectónica daquilo que antes rasgava orgulhosamente a invicta cidade e do qual só restam as memórias, a saudade. As noitadas, os bailes, as reuniões da massa intelectual viva e a florescer, os resquícios políticos do antigo regime. E olha o Porto por dentro, nas suas entranhas. Percorre-o nas ruelas, visita o rio, observa-o igualmente em plano geral. E no fim são as ondas de novo, a casa que jaze algures mas que permanece viva em si. Ouve-se uma voz de timbre popular a cantar. Porque o Porto é afinal uma cidade do povo.
     
      Aquilo que se constata neste documentário poético e intimista de Oliveira, é que em momento algum se sente que seja um veículo destinado a curar feridas do passado. Ele é feito daquela serenidade que só o muito conhecimento transmite. Sendo algo que pretende reflectir documentalmente uma cidade buscando muito do seu passado, o velho realizador de 93 anos que demonstra aqui a sua jovialidade criativa, vagueia incessantemente entre os ambientes estáticos e a recriação do movimento da vida na urbe. Por vezes romântico em cor e luz, outras declaradamente impressionista para poder retratar com acuidade a genuína alma do Porto. Mas Manoel de Oliveira acaba por revelar nesta sua obra maiores similitudes com Degas devido à proximidade assumida por si com os temas e composição. Com simplicidade, sim, mas esclarecido e esclarecedor objecto da arte de um homem que o cinema roubou ao desporto, e que o desporto roubara à boémia.

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