quinta-feira, 14 de outubro de 2010

QUARESMA



      UM FILME PARA BEATRIZ
     
      Anteriormente a este «Quaresma», José Álvaro Morais realizou «Peixe Lua», em 1999. A fita estendia-se pelas planícies do sul até terras de Espanha e sobressaía dela uma curiosa mas genuína portugalidade. Quer pelo ensaio efectuado sobre uma burguesia rural em decadência, quer pela latente sexualidade nas quentes noites do além Tejo. Desse filme, o cineasta português nascido em terras do Mondego retomou a desintegração progressiva de uma classe social que se tem afundado na sua incapacidade de regeneração e recuperou igualmente os actores Beatriz Batarda e Ricardo Aibéo. No entanto, rumou a norte trocando Lisboa e o Sul pela Covilhã e Serra da Estrela, e a tórrida Espanha pela fria Dinamarca. Mas percebem-se nesta sua obra os mesmos contornos de fundo. Pela sua obstinação em filmar os desvios da normalidade convencional como íntimos factores de sedução, por um lado, e um certo vazio melancólico que se pressente, por outro. Pena é que o realizador pareça tornar-se refém do seu próprio entusiasmo acabando por sacrificar o todo de um universo de personagens de rara dimensão existencial para se situar apenas numa parte, ou seja, numa só dessas personagens.
     
      David (Filipe Cary) é um jovem pai de família que está prestes a viajar até à Dinamarca. No entanto, antes disso, David ruma desde Lisboa até ao interior por motivo da morte do avô. Ali, na sua terra bem junto à Serra da Estrela, ele vai encontrar as lembranças do passado e a sua família de quem estivera distante durante anos: os tios, a governanta, os primos, a memória do pai e… Ana (Beatriz Batarda), uma jovem que adora andar descalça sobre as terras frias e húmidas e que trilha um caminho muito nos limites da loucura. Ela é a mulher do primo Zé Guilherme (Ricardo Aibéo), um industrial dos lanifícios. Imerso no seu comportamento extravagante, reside em Ana um poder de encanto muito forte. E David sente-se arrebatado pela mulher do primo, acabando por prolongar a sua estadia e passar algum tempo com ela. Mas, para Ana, David necessitava libertar-se mais, abraçar a vida ao ritmo do momento presente ainda que efémero, esquecer todo um mundo que o rodeava e esperava por ele lá fora. Para ela, David não é suficientemente louco para entender a sua diferença. Mais tarde, já na Dinamarca com a família, ele recebe a visita de Ana que ali vai para repousar durante uns tempos longe do para si claustrofóbico ambiente habitual.
     
      O filme destaca-se desde logo pela sua beleza plástica. A imagem, da responsabilidade de Acácio de Almeida, tem o mérito de transportar o espectador até às paisagens frescas do norte levando-o a confundir o frio do ar-condicionado da sala de cinema com os ventos gelados da serra. Na parte inicial, altura em que são evocadas reminiscências de uma certa aristocracia com quem este país já conviveu e agora tem dificuldades de simples reconhecimento, torna-se valorosa a realização de José Álvaro Morais. O ar perdido de David ouvindo a governanta falar-lhe de memórias queridas e o mesmo dando-se ao (re)conhecimento às figuras da terra que o conheceram apenas menino, são retratos puros do nosso país, de um país real e profundo. Logo após, surge Ana e dá-se como que um latejar na sala. Beatriz Batarda, a actriz que protagoniza Ana, possui uma imagem forte na tela. É como se a sua presença fosse o raio de luz que ilumina o cinzento das paisagens do filme. José Alvaro Morais sabia disso e esse foi o seu pecado em «Quaresma». O que era uma promessa estimulante acaba por não se concretizar. É que a partir da entrada de Ana em cena a câmara parece esquecer-se de tudo o resto e filma apenas a personagem. David surge então como um simples e necessário contraponto para justificação das suas acções. Nos consentimentos e nas recusas.
     
      Em termos ainda do elenco, é justo destacar-se o nome de Ricardo Aibéo. Confesso que tenho olhado para o trabalho do actor com algum cepticismo. Mas neste filme, Aibéo parece encontrar o seu espaço. Uma certa tendência natural que possui para a demonstração quase física das dores de alma é aqui recompensada. A tristeza resignada do seu olhar, o tratamento compreensivo e reconfortante que dispensa à mulher que afinal o faz sofrer, resultam de um trabalho de representação digno de relevo. Já Filipe Cary cumpre sem deslumbrar nesta sua primeira prestação como actor. Quanto à realização, e para lá dos factores anteriormente referidos, são evidentes alguns hiatos da narrativa que despreza determinadas explicações sobre factos importantes do enredo. Factos que jamais deveriam ficar sujeitos à simples dedução do espectador. Mas, é bom frisar, o grave é que é a câmara de José Álvaro Morais que permite a ideia (justa) de que Beatriz Batarda se aproveita muito mais do filme que o filme a aproveita a ela. E, quanto a mim, essa não é uma relação justa. Sobretudo em cinema.

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