quinta-feira, 14 de outubro de 2010

RAPARIGA COM BRINCO DE PÉROLA



      PINTANDO A MATÉRIA DO AMOR
     
      Mais uma vez o cinema surge de mãos dadas com a pintura; recentemente tivéramos nas nossas salas «Pollock» (2000) e «Frida» (2002) para agora as câmaras se virarem para a arte de Johannes Vermeer, pintor holandês do Séc.XVII. Desta feita, a realização concentrou-se nas motivações para determinada criação artística enjeitando a biografia do seu autor.

     
      Olivia Hetreed, a argumentista deste filme que marca a estreia nas longas-metragens por parte do realizador Peter Webber, é mulher do produtor Andrew Peterson. Em boa verdade, é devido ao esforço do casal que «Girl With a Pearl Earring», no seu título original, pôde ver a luz do dia. Talvez seja interessante, até para percebermos o contexto da obra, explicar o porquê de tal: Johannes Vermeer é considerado um dos maiores pintores holandeses de sempre, talvez somente suplantado pelo fabuloso Rembrandt. No entanto, um quadro desde sempre intrigou os estudiosos da obra do artista ele que já de si foi um homem fechado sobre si mesmo e pouco ou nada transparente. Esse quadro, precisamente denominado «Rapariga com Brinco de Pérola», suscitou as maiores especulações sobre de quem seria o belo mas indecifrável rosto de mulher nele retratado. Desse modo, assim que o produtor e a argumentista descobriram o livro de Tracy Chevalier, que versa sobre o tema, imediatamente adquiriram os seus direitos para o cinema. Sobre o restante, isto é, sobre o filme de Webber, falaremos a seguir.
     
      Estamos em Delft, Holanda, em meados da década de 60 do Séc. XVII. Griet (Scarlett Johansson) é uma jovem de 17 anos a quem um drama familiar obriga a tornar-se criada na casa do pintor Johannes Vermeer (Colin Firth). Na mansão, Griet depara-se com outros elementos da criadagem, é certo, mas sobretudo virá a ser problemática a sua relação com a mulher do pintor e uma de entre os seis filhos do casal. Entretanto, uma especial aptidão sua para trabalhar as tintas e perceber as especificidades mais delicadas da pintura, como por exemplo a importância da luz na referida forma de arte, aproxima-a cada vez mais de Vermeer. Ele é um artista introspectivo, contemplativo, cujo trabalho resulta somente dos momentos de inspiração e não de uma ânsia produtiva inimiga da perfeição técnica. É com indisfarçável desdém que Vermeer observa a forma despojada da mínima sensibilidade com que a sogra comercializa o seu dom. Griet passa a dormir no seu atelier para poder preparar as cores e ajuda igualmente o seu mestre na preparação dos cenários. Entre os dois agiganta-se um forte sentimento de atracção, nunca consumado, que culmina com Griet a posar para o pintor usando numa orelha, que é furada somente então com esse objectivo, um brinco de pérola que é propriedade da mulher de Vermeer.
     
      Diga-se que a realização de Peter Webber, desenvolvendo uma narrativa de cariz intensamente psicológico e intimista, alcança um feito preponderante no sentido de ajudar à compreensão sobre a arte de Vermeeer: idealizou uma obra plena de serenidade, contemplativa até ao limite, que destapa um pouco o véu sobre a essência criativa de um pintor de quem nos chegaram somente 36 quadros. Para isso muito contribuíram igualmente as névoas românticas e a aura de deslumbramento encantatório que rodearam a relação entre o artista e a sua modelo. Uma paixão que apenas se concretizou nas omissões e nunca nos actos, sequer nas palavras, o que ajudou a criar um ambiente de asfixia sentimental que se transmite da tela para o espectador. E nesse sentido, Webber triunfou já que nesta aliança renovada entre o cinema e a pintura se recusou a fazer um filme sobre a natureza do amor para almejar construir uma obra que nos fala preferencialmente do amor de alguém pela pintura.
     
      Apesar da esplêndida fotografia (da responsabilidade do “nosso” Eduardo Serra), do fantástico guarda-roupa e da rigorosa direcção artística, cujas nomeações para os Óscares só vêm acentuar a forma como foi desenvolvida uma intensa preocupação pelo detalhe, o filme está longe de ser perfeito. Isto porque demonstra um evidente desequilíbrio entre a importância daquilo que lhe está na origem, ou seja, a explicação, por sua vez, daquilo que esteve na génese de um quadro famoso também pelo mistério que o rodeia, e o argumento demasiado limitado em termos de matéria do enredo. E também porque, quando estes existem, se percebe existir no filme uma má gestão dos momentos de tensão dramática. Falando com clareza, «Rapariga com Brinco de Pérola» é um filme cujo enredo sabe a pouco mesmo reconhecendo nós que a tentativa de atribuir uma certa visão purificadora ao trabalho de um artista pode ter condicionado a própria realização. Realce-se, finalmente, o trabalho de actor de Colin Firth, que concede à sua personagem e ao filme um respingo de amargura tão adequado à caracterização da personalidade inquieta do(s) artista(s), e para Scarlett Johansson que depois de «Lost in Translation», de Sofia Coppola, volta a deliciar-nos com a candura do seu rosto, a timidez do seu olhar, a eficaz simplicidade da sua técnica de representação. A não perder, sobretudo para aqueles que amando o cinema estendem a sua paixão pela arte em geral à pintura em particular.

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