quinta-feira, 14 de outubro de 2010

RASGANÇO

      

   



   O MANIFESTO DE RAQUEL FREIRE
     
      Raquel Freire, a realizadora de «Rasganço», diz logo no início da sua “Nota de Intenções” e antes de outras razões também por si em seguida apontadas, que fez este filme para acreditar no amor. Mas - digo eu - o amor, esse, a existir em «Rasganço» quedar-se-á apenas na forma apaixonada como Raquel (que escreveu igualmente o argumento) vai revelando as suas convicções, ou, para ser justo, também no modo carinhoso, mesmo poético, como filma Coimbra. A par destes pormenores, e antes de entrar na verdadeira essência pela qual se reveste o filme, há que destacar a excelência da banda sonora favorecida pela competência (o que denota bom gosto da autora) com que se gerem as cumplicidades entre imagens e som.
     
     
     
      Assumidamente crítica perante o conservadorismo com que o poder estudantil (a Associação Académica) vai gerindo a sua força, contrária ao elitismo de que acusa o meio estudantil e a própria cidade amarrada a condutas que supostamente lhe trarão alguma singularidade nacional no que à influência universitária se refere, Raquel Freire agarra-se inteligentemente a factores onde, pela injustificada selvajaria e arrogante impiedade, pretende não somente justificar as suas ideias como obter algum capital de simpatia para a sua causa e que são as praxes académicas. Este facto, a ficar-se neste simples mecanismo de procura de afecto, não seria de todo antipático aos olhos de quem tenta alguma imparcialidade de análise. O que acontece é que existem pormenores de evidente manipulação do espectador criados na própria sinopse do filme. De tal forma isso acontece que Edgar (Ricardo Aibéo), aquele que é visto como a fonte do mal através dos crimes por si perpetrados, acaba por não apenas se mostrar como o elemento simbólico dos excluídos pela tal sociedade elitista e fechada sobre si, como, mais que isso, surge aos nossos olhos (aos meus, pelo menos) como uma pobre vítima empurrada para determinada conduta marginal. Neste particular discordo de Raquel Freire quando disse, em entrevista ao “Expresso”, tentando justificar o porquê das ligações de Edgar com as três mulheres, que “mesmo o Mal precisa de ser amado”. Não, não vi que Edgar fosse o Mal em «Rasganço». O Mal em «Rasganço» é a Universidade, é a Associação Académica, é o conservadorismo estudantil... É Coimbra no seu todo do modo como nos surge através da óptica de «Rasganço». Edgar, repito, é somente a materialização indefesa desse Mal.
     
     
     
      (não deixa de ser curioso que, num filme onde a principal vertente reside na crítica ostensiva a um mundo elitista, e esquecendo a personagem de Edgar pelo seu evidente simbolismo do excluído que se revolta, duas das personagens que evoluem na narrativa e que são externas a esse mundo pretensamente superior tenham sido dotadas de um perfil algo pitoresco; refiro-me a Maria dos Anjos, funcionária superior da Misericórdia, um prodígio de provincianismo e cultivadora de uma mentalidade repleta de complexos de inferioridade e raciocínio de linearidade básica, e à personagem algo boçal do Inspector da Judiciária; um contra-senso, talvez, já que dessa forma justificam a injustificável presunção dos outros)
     
     
     
      Em termos de desempenho do “cast”, pese embora o bom nível da generalidade com destaque para essa senhora do cinema nacional que é Isabel Ruth, Ricardo Aibéo repete aquilo que já lhe tinha percebido em «Peixe Lua»: é um actor cujos registos carecem daquela desenvoltura que concede carisma e força às personagens corporizadas, com a agravante de uma muito teatralizada e sempre grave (mesmo que tal não se justifique) colocação de voz.
     
     
     
      «Rasganço» é pois um filme de uma nova realizadora que quer fazer-se ouvir no panorama cinematográfico nacional, procurando fazê-lo evitando a esterilidade de ideias e objectivando um discurso com causas. Na minha perspectiva pessoal, não conseguiu fazê-lo sem se despir de algum carácter emocional e dos seus próprios preconceitos (neste aspecto, e a meu ver, joga a desfavor de Raquel Freire o facto desta não ter sido uma simples estudante universitária em Coimbra mas de ter sido poder nessa instituição, foi vice-presidente da AE; seria importante perceber se já vêm daí as ideias da realizadora). Como tal foi-se perdendo quase sempre na filmagem da matéria que justificava a teoria. A sua teoria. Para além disso, e mesmo reconhecendo que a ficção permite muitas vezes a adulteração dos factos e que determinadas resoluções de pormenores da sinopse se justificam em situações explicadas por necessários eufemismos, entendo que esta vertente poderia ter sido muito melhor trabalhada.
     
      No entanto, no seu filme, Raquel Freire permitiu abrir uma janela sobre si e sobre factos que permanecem ainda hoje injustificados “tabus”, permitiu a discussão. E isso é muito positivo e de assinalar num cinema português que se sente não ir muito por aí, ou, quando vai, vai sempre de forma algo pretensiosa e apelativa de eruditismos bacocos.


Sem comentários: