quinta-feira, 14 de outubro de 2010

RELATÓRIO MINORITÁRIO




  

      MEMÓRIAS DO FUTURO: O HOMEM, ESSE GRÂO DE AREIA NA ENGRENAGEM EVOLUTIVA
     
      Em que mundo vivemos nós? Por que existe no nosso mundo a doença, o crime, o sofrimento? E que saberemos nós arquitectar para nossa protecção, de que antídotos poderemos socorrer-nos e usar contra tais desígnios de dor? E se o perigo estiver representado exactamente em nós?
     
      Washington D. C., ano de 2054: a esperança de vida atinge os 100 anos, carros deslizam sobre carris magnéticos em auto-estradas verticais, a leitura óptica – não apenas em matéria de segurança mas também como meio informativo de hábitos sociais – substituiu o tradicional Bilhete de Identidade. Aparentemente, um futuro florescente onde tudo se conjuga para uma forma de vida radiosa do ser humano. Mas isso não basta, ao homem há que atingir a perfeição. Baseado numa história do visionário escritor Phillip K. Dick, autor também dos livros adaptados ao cinema em «Total Recall» e no fabuloso «Blade Runner», «Minority Report» é a mais recente incursão de Steven Spielberg no género de ficção científica. Isto logo após «A. I. : Inteligência Artificial». Acrescente-se ainda que Spielberg será, porventura, o cineasta que melhor conjugará na arte cinematográfica a indiscutível qualidade da obra artística com a capacidade desta em cativar as massas.
     
      Mas se «Minority Report» é um esplendoroso hino de formalidade, estética e fantástica criatividade visual num futuro distante de nós apenas meio século, ele é também a demonstração inequívoca de como a capacidade inventiva do homem se pode tornar nociva sob a aparência e a pretexto do bem. Ou das formas tentadas para alcançar tal. E é precisamente nesta problemática que assenta a profundidade da reflexão que Spielberg leva a cabo neste filme, ajudado pela espantosa criatividade – há que o referir – de um escritor cada vez mais reconhecido pela sua sagacidade na antevisão do futuro. Mas uma reflexão extraordinariamente valorizada pela imensidão de códigos e artifícios (no bom sentido) cinematográficos, magistralmente usados pelo criador de E.T. e de Indiana Jones, figuras que ficarão para sempre ligadas à fabulosa galeria de míticas personagens saídas da tela cinematográfica.
     
      Mas a partir de que ideia central decorre a acção sobre a qual assenta a história como pretexto para a reflexão? No futuro, já anteriormente aqui descrito, foi criada uma divisão de pré-crime. Essa divisão policial actua a partir da antevisão de acontecimentos, crimes, efectuada por três seres humanos numa espécie de transe, os pre-cogs, e saída das suas fantásticas capacidades mentais, capacidades essas situadas já no âmbito do paranormal. E é a partir daqui que os dados são lançados em termos da problemática existencialista que o filme leva a cabo. Não apenas em matéria da justiça e do direito, porque o (potencial) criminoso é detido em antecipação ao crime que vai cometer, como até em matéria de direitos humanos tendo em conta, por exemplo, a devassa da vida privada que é estabelecida (a cena inicial do filme é um exemplo entre outros deste particular aspecto). Mas o filme vai mais longe a partir do momento em que o nome de John Anderton (Tom Cruise), um detective da divisão, surge como acusado de ser o próximo indivíduo a perpetrar um assassínio. Longe de se circunscrever ao convencionalismo de qualquer outro thriller, o filme reinventa o género através da personagem de Anderton que mais do que ver-se a braços com a tarefa de ter de provar a sua inocência da autoria de um crime, vai ter que lutar para evitar que esse crime aconteça. Anderton tem ainda que desafiar a hipotética perfeição do sistema. Diga-se também, e como forma de baralhar os dados prévios à mercê do espectador, que este é um projecto polémico que funcionará ainda em regime experimental e a necessitar de se afirmar eficaz e inatacável como forma objectiva de obtenção da aprovação definitiva. Esclareça-se ainda que os indivíduos que ajuízam o relatório nem sempre se encontram de acordo. Quando tal acontece e o desacordo sucede, prevalecendo então a simples posição de um deles, esse relatório designa-se de Relatório Minoritário (Minority Report). E daí – infelizmente, digo eu, pois trata-se de uma expressão que poderia equivaler a uma extraordinária dimensão política/social/policial tendo em conta aquilo que a sua elaboração despoleta – o título do filme.
     
      Primeira constatação de algo que já se adivinhara em «A. I.»: Steven Spielberg está diferente. Não que o realizador tenha abandonado o carácter emocional/sentimental das suas abordagens cinematográficas, não que a inserção do dramatismo de cariz familiar se tenha perdido. Não, nada disso. Como prova, basta observar como o detective John Anderton, ao empreender a sua luta, se vê confrontado com a tragédia do seu passado como marido e pai, como as emoções se sobrepõem em si relativamente à razão quando seria desejável o oposto. Basta que observemos atentamente, sempre que este revê projectadas em hologramas imagens do filho ausente, as dolorosas lágrimas que lhe não escorrem pelo rosto por ficarem retidas não apenas pela angústia que o domina mas sobretudo pela revolta e recusa em acreditar no pior. E por querer continuar a acreditar que é possível o retorno. Mas a diferença que se nota em Spielberg, é que este demonstra agora mais claramente, como se essa evidência fosse um objectivo declarado, as suas cada vez maiores referências Kubrickianas. Repare-se na forma gestual como John Anderton dirige a leitura de dados do sistema informático delineada em imagens holográficas. Essa era uma característica conceptual de Kubrick e que tão bem esteve representada na sua derradeira obra-prima, «Eyes Wide Shut»: através de simbolismos mais ou menos evidentes, evocar a vertente mais erudita das formas de arte. Fosse ela um simples bailado clássico, uma ópera, ou, como no caso de John Anderton relativamente às imagens em hologramas, um maestro a dirigir a sua orquestra. Mas há mais: se em «2001: Odisseia no Espaço», de Kubrick, havia uma máquina que matava devido a um conflito irreconciliável surgido com a sua avaria e como forma de evitar a continuação desse conflito (a nave Hal 9000 no decurso de uma histórica viagem interespacial), em «Minority Report» existe um paralelismo de conflitos passível de se estabelecer, embora com o ser humano no epicentro do drama, no facto de se procurar justificar matar alguém como meio de defesa e comprovação de eficácia para algo que tem como finalidade evitar posteriormente mais mortes (crimes).
     
      Realce final para a suprema capacidade de Steven Spielberg em se fazer rodear dos melhores entre os melhores. Jasnusz Kaminski, responsável pela belíssima fotografia, John Williams (de novo) pela música extremamente adequada e eficaz, e os actores Colin Farrel (num surpreendente Detective Danny Witwer), Peter Stormare (o estranho Dr. Solomon), Max Von Sydow (o altivo Director da divisão de Pré-crime, Lamar Burgess) e a fantástica Samantha Morton (a paranormal Agatha) a quem coube protagonizar algumas das mais enigmáticas e impressionantes expressões físicas e orais das personagens do filme. Quanto a Tom Cruise, há que ser claro e directo: o actor faz-me lembrar aqueles indivíduos que se salientam pela inequívoca qualidade e originalidade do que fazem relativamente aos restantes, mas, porque concentram em si várias qualidades que normalmente se encontram espalhadas nos outros, são olhados pelos seus pares com mal disfarçada normalidade, sendo até por eles por vezes ignorados. Mas eles, os outros, não o divulgam mas reconhecem-lhe intimamente o valor, e percebem mesmo, alguns deles, a sua inferioridade não se coibindo de os procurarem igualar. Resumindo: Tom Cruise é, quer tal se admita ou não, um espantoso actor. E embora se lhe conheçam prestações interpretativas abaixo das suas potencialidades, em «Minority Report» faz mais uma vez prova da sua qualidade como actor. Uma qualidade, aliás, ao nível da qualidade do filme, para a qual muito contribuiu, e do realizador que o assina, também ele um prodígio no seu trabalho mas a quem muitos teimam em não reconhecer as qualidades únicas que um dia o alcandorarão a um lugar na história do cinema. Se é que esse lugar não é já seu por direito próprio.

Sem comentários: