sexta-feira, 15 de outubro de 2010

RESPIRO




A PUREZA DE UM MUNDO CADA VEZ MAIS DISTANTE
     
      É bom sentirmos que por detrás da aparente indiferença pode existir algo de belo dentro de nós, um mundo que teimamos esquecer no bulício dos dias, na pressão do quotidiano. O cinema, na sua simplicidade, na sua excelência, desperta esse mundo que aprisionámos, que interiormente carregamos adormecido. «Respiro», segunda longa-metragem do jovem cineasta italiano Emanuele Crialese, tem esse condão. Porque nele existe um contraste de frescura e vida patente entre o mar de águas azuis, um mar rico e belo, e a pesada atmosfera da terra árida e pobre da ilha de Lampedusa. Um lugar remoto que ainda assim se nos afigura como um paraíso perdido algures entre Malta e a Sicília. Um local encantador, de cartão de identidade europeu mas alma rasgada por uma acentuada melancolia africana.
     
      Crialese apresenta-nos a Grazia. Grazia é bela, de certo modo atormentada, asfixiada por um mundo infimamente mais pequeno que aquele que o brilho no seu olhar reflecte e suporta. Na sua excentricidade de mãe afectuosa e cúmplice de infantilidades incompreensíveis ao olhar alheio, na sua rebeldia e tumultuosa vivência, Grazia provoca em nós o quebrar de uma letargia emocional que nos tornara seres apáticos, quiçá medíocres. Reclamam-se analogias cinematográficas com realizadores italianos de outrora. Mas se existe alguma cumplicidade, por exemplo, entre o neo-realismo italiano invocado pelo cinema de Vitorio De Sica e este de Emanuele Crialese, ela reside essencialmente na arte de expor afectos, na ternura, no sentimento, no amor. Sim, «Respiro» é um filme sobre o amor. O amor pela vida.
     
      O enredo do filme baseia-se em factos reais. Ainda assim uma realidade influenciada pelo misticismo de um povo de tradições arcaicas, gentes habituadas a apelar à fé e religião para a resolução de muitos dos seus problemas. Grazia (Valeria Golino) é ainda muito jovem, mulher lindíssima, esposa de um pescador (Vincenzo Amato) e mãe de três filhos. A sua personalidade extravagante e misteriosa choca no entanto com a mentalidade mesquinha das gentes de Lampedusa. Designadamente entre a comunidade de pescadores em que está inserida ela é olhada de soslaio. Pressionado por vizinhos e amigos, Pietro, o marido, vê-se compelido a enviar Grazia para uma clínica em Milão de molde a poder tratar a sua alegada doença. Mas o espírito livre de Grazia, que encontra apenas nas águas do mar o meio de se expandir em mergulhos impregnados de tórrida sensualidade exposta no seu imaculado corpo molhado, não pode permitir qualquer género de clausura. Ajudada por Pasquale (Francesco Casisa), um dos filhos com quem mantém uma relação aparentemente trespassada por fragrâncias de um inocente e não concretizado incesto, Grazia foge do cruel destino que lhe haviam traçado. O mito a que o filme foi beber inspiração, remete-nos para um posterior reaparecimento da mulher rejeitada trazida então pelas águas do mar e orações do povo, pormenor que levaria à sua santificação. E o filme trabalha a racionalização desse facto esdrúxulo não descurando no entanto o valor místico da história. Tal é concretizado pela abordagem eminentemente poética da narrativa, sendo fabuloso o domínio dos espaços e dos contrastes de cores e luzes efectuado pela realização de Crialese.
     
      O que se observa é, pois, um filme visualmente lindíssimo enriquecido por uma dimensão espiritual que tem a capacidade suplementar de mexer com as experiências pessoais de cada um. As brincadeiras aparentemente perigosas mas repletas de pureza e inocência das crianças de Lampedusa são um exemplo concreto do que se defende. Elas remetem-nos para a nostalgia de um passado entretanto perdido nas nossas mais recônditas memórias de infância. Por outro lado, o processo de rejeição motivado pela intolerância às diferenças do outro assim como a espiral de culpa e redenção que se materializa em actos ilógicos e puramente religiosos, são apresentados na fita através de simbolismos perfeitamente reconhecíveis pelo espectador. O que joga a favor do filme.
     
      Valeria Golino, que ainda recentemente víramos em «Frida», é a energia impulsiva e compulsiva do filme. Ao interpretar a singular Grazia, a actriz terá conseguido materializar a prestação da sua carreira apesar deste ser um facto que só o futuro poderá confirmar ou não. No restante, o elenco, quase todo ele amador, ajuda a conceder ao filme uma dimensão naturalista que só o sentimentalismo místico que em si faz questão de evidenciar não confirma totalmente. O que se confirma, contudo, é a característica envolvente da narrativa que faz deste um filme ímpar. E não, não haja ilusões. Esta não é uma fita que nos deixe pregados à cadeira no seu términos. Este é antes um filme para ser desfrutado ao longo dos seus cerca de 90 minutos de duração enlevados igualmente pela belíssima fotografia. E sim, ver este filme é experimentar algo mais que aquilo que o seu verdadeiro valor cinematográfico provavelmente nos permitiria conceder.

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