quinta-feira, 14 de outubro de 2010

SOB A AREIA




      A VIUVEZ RECUSADA, A DOR REPELIDA
     
      Séneca, pensador longínquo nos anos mas intemporal no legado filosófico, disse um dia que “importante não é o que suportamos mas o modo como o suportamos”. François Ozon, realizador de cinema francês na actualidade, de alguma forma retoma nesta sua obra essa inquietante temática. Mas, «Sous Le Sable», não é, obviamente, um decalque de pensamentos de sempre. No entanto, o filme trabalha de forma brilhante as incertezas de uma mulher perante a alta probalidade da morte do homem que ama desde há 25 anos de vida em comum. Martirizam-na a perda do companheiro, do homem que amava, é certo, mas, sobretudo, perturba-a imaginar que a possibilidade deste a ter abandonado existe. Seja este abandono um abandono simples, isto é, que tenha partido para longe dela, para outra vida longe daquela, seja um abandono tresloucado e sem retorno, que tenha cometido suicídio. E, aproveitando a dilacerante suposição de uma mulher que se decide ao autismo perante o drama que a sacudiu, Ozon constrói uma narrativa impregnada de muito realismo mas assente numa atitude individual capaz de levar à incompreensão social. Uma história trágica que envolve uma morte e uma viuvez indesejada. Mais que indesejada, repelida.
     
      A história começa de forma discreta. Marie e Jean, 25 anos de um feliz casamento viajam de férias. O local é o sudoeste de França, a casa a de sempre que é visitada nestas alturas, o ambiente bucólico, as tarefas desprendidas da pressão habitual. Mas no rosto de Jean subsistem traços que antecipam algo de grave. No dia seguinte uma ida à praia. Ela lê deitada na areia, ele desafia as ondas meio alterosas do mar. Marie levanta o olhar, Marie não consegue observar Jean, Jean desaparecera. E não aparece mais. Marie regressa a Paris. Mas, estranhamente, Marie continua a agir, só e em ambiente social, como se Jean ainda se mantivesse a seu lado.
     
      Existe desde logo uma questão incontornável que Ozon lança para a mesa da discussão: ela tem que ver com o facto de se saber se Marie age desta forma consciente dos seus actos, ou se, por outro lado, o sofrimento a fez entrar num processo demencial de delírio. A conclusão só pode ser uma, que aliás se depreende pela narrativa, a de que o realizador (e co-argumentista) quis que Marie se mantivesse consciente da sua atitude. Ela, a atitude, prende-se com a sua recusa em lidar emocionalmente com a perda que teve. E com a culpa, com os remorsos. Mas, ao enveredar por este percurso criativo, François Ozon fá-lo de consciência e demonstra quão complexo é o sistema emotivo e quão diferente é a forma de reagir às adversidades por cada indivíduo. Psicologicamente denso e perturbador, numa era de grandes discussões em torno da inteligência artificial, o filme arrisca aquilo que acreditamos ser característica inalienável do ser humano: a inviabilidade de se associar ao nosso comportamento perante o imprevisto um qualquer manual de instruções que nos possa ajudar a lidar com picos de dor. Ou de euforia. E como ninguém programara Marie para, perante aquele acontecimento trágico, correr pelo areal de olhos alagados, de coração apertado, tecido nervoso contraído e gritando ao mundo a sua dor, expelindo a sua dor, exorcizando a sua dor, Marie recolheu-a no mais remoto e abstracto cantinho da sua (ir)razoabilidade.
     
      «Sob a Areia», é pois mais um relevante contributo do cinema francês para a valorização da oferta de exibição cinematográfica no nosso circuito comercial de salas. Um filme revelador do desconforto a que pode ser levada a alma humana em chaga, mas igualmente indiciador do quanto o cinema também pode (e deve) pensar a vida. No meio deste acontecimento movimenta-se uma actriz de talento excepcional: Charlotte Rampling. A sua figura altiva sem nunca perder o sentido do apropriado, o seu ar aristocrático - mas discreto - e o seu talento artístico, apenas necessitaram de se aliar à inspiração que demonstrou possuir ao compor esta personagem inquieta que, a existir na realidade, poderia ser ponto de partida para uma qualquer teoria psicológica no domínio comportamental do ser humano. Até porque a verdadeira fonte de preocupação não se confinou à morte ocorrida, mas sim aos juízos que a partir dela intimamente se desenvolveram.

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