quinta-feira, 14 de outubro de 2010

SONHOS DESFEITOS


 
 
 
     
      VIDAS QUE SE REERGUEM SORRINDO À DOR
     
      Do visionamento de «Sonhos Desfeitos», fica desde logo em nós uma saliente sensação de bem-estar por percebermos que ainda existe quem, no panorama actual do cinema dito comercial, consiga tratar temas tão delicados como é exemplo a inesperada morte de um ente querido, com extrema sensibilidade e sem cair na tentação da lamechice e do sentimentalismo gratuito. È certo que ainda não é de há muito a produção de filmes onde essa capacidade está igualmente presente sem que se tenha abdicado de idêntica intensidade emocional, mas um deles pertencia ao cinema independente norte-americano enquanto o outro à velha escola europeia de cinema. Refiro-me, é claro, a «Vidas Privadas», de Todd Field, e a «O Quarto do Filho», de Nanni Moretti. Escrito e realizado por Brad Silberling, que tem pautado a sua carreira principalmente pela ficção televisiva mas que dirigiu anteriormente o agradável e melancólico «Cidade dos Anjos», é o próprio a revelar que a história sobre a qual o argumento se desenvolve se baseia numa experiência similar à do jovem protagonista do filme e vivida por si mesmo anos atrás.
     
      A trama incide sobre um jovem, Joe Nast (Jake Gyllenhaal), subitamente enredado num esquema natural de estabelecimento de sujeições e cumprimento de deveres sociais. O próprio adere a essa situação de extrema inquietude, motivado pela enervante insegurança que patenteia e absoluta incapacidade de (re)agir perante uma fatalidade que se abate sobre si e sobre aqueles para com os quais se sente obrigado. Isto tudo porque Joe vira o seu noivado e eminente casamento brutalmente interrompido pela morte trágica da noiva. É então que, juntamente com Ben (Dustin Hoffman) e Jojo (Susan Sarandon) - aqueles que deveriam ter-se tornado seus sogros, irá ser testemunha do modo como o destroçar de sonhos se abate sobre uma casa e permitir-se ainda fazer parte de uma ideia de recomposição da família. Uma família à qual não terá chegado a pertencer e uma recomposição difícil, dura, mas uma recomposição ainda assim. Aliado ao conflito interior que vive e o dilacera, tudo se agrava quando conhece Bertie (Ellen Pompeo), uma jovem que despertará em si o amor. A perda comum de alguém surge como elemento inicial de aproximação afectiva entre os dois, mas com uma diferença importante já que Bertie não reconhecia até então a imutabilidade dessa situação. Porque no seu caso é com a ausência de um corpo que lida: o seu namorado (apenas) desaparecera algures na guerra do Vietname.
     
      A sensação inicial que o filme arrisca transmitir é de alguma desconfiança e até de possível choque. Isto porque à partida nos preparamos para assistir a uma realização que se limita a trabalhar os mecanismos do melodrama clássico e posteriormente verificamos que está longe de se ter limitado a isso. O humor negro que o filme patenteia faz de si uma variação em registo trágico daquilo que poderia ter sido uma comédia. E faz também todo o sentido salientar neste texto o modo como nos é apresentado todo aquele chorrilho de lugares-comuns ligados aos rituais e votos de pesar que a família enlutada é obrigada a suportar quando a sua única esperança é poder viver silenciosamente a sua dor. No seu desenvolvimento, a trama encaminha-se para a redenção que aquela família tenta materializar para si através das estruturas judiciais. Até que percebe, muito por culpa de Joe e do sentimento que o invade e lhe transmite lucidez, que a verdadeira redenção só pode ser encontrada em si mesma através da forma justa como age e do modo como recorda a filha que chora.
     
      A partir de uma história inquietante, o realizador Brad Silberling construiu não só um filme que nos apresenta uma forma diferente de lidar cinematograficamente com a morte, dotando-o de um sentido de humor pouco comum mas alcançado na sua plenitude, como conseguiu oferecer-nos uma experiência de cinema emocionalmente enriquecedora e intelectualmente estimulante. Em termos interpretativos, o destaque vai para a segurança de uma actriz fabulosa como Susan Sarandon e, sobretudo, para a passagem pela tela de Holly Hunter como a advogada Mona Camp: embora fugaz, uma presença fortíssima. Quanto a Dustin Hoffman, a sua composição de um pai amargurado por sentir que perdeu a sua filha sem que alguma vez lhe tenha dado a atenção devida, é ofuscada pelo excesso de maneirismos associados a trabalhos seus anteriores. Já Jake Gyllenhaal, ele que corporizou o filme de culto «Donnie Darko», arrisca-se a uma especialização em personagens de jovens estranhos e meio perdidos na vida que lhe pode limitar a progressão na carreira. Mas isso a acontecer será no futuro, porque o passado e o presente demonstram que é na estranheza das suas personagens que reside o espírito dos filmes em que participou. No resto, temos uma irrepreensível localidade dos anos 70 no interior dos Estados Unidos, onde não faltam as músicas que marcaram a época e o espectro ainda bem vivo de um Vietname geograficamente tão distante mas dolorosamente tão perto do povo americano. A não perder.

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