quinta-feira, 14 de outubro de 2010

TRAFFIC - NINGUÉM SAI ILESO



      TÂO DURO QUANTO A REALIDADE QUE EVOCA
     
      «Traffic» é sem dúvida um grande filme, muito realístico e avesso ao simples intuito comercial, de uma solidez insofismável, coeso no seu argumento apesar da visão patenteada no seguimento das vidas unidas pelo drama mas decorrendo em paralelo e, por isso mesmo, complexo. Abordando a temática difícil de um dos maiores flagelos sociais do nosso tempo, a droga, percorremos a sua trajectória comercial conhecendo aqueles que vulgarmente são designados por barões da droga, o percurso desta até ao mercado, ao pequeno 'dealer' e somos ainda confrontados com o drama do consumidor, dos seus familiares por arrasto. Enquanto isto reconhecemos a burocracia de uma máquina estatal incapaz de se adaptar em método e orçamento nesta luta que se quer eficaz, acompanhamos a investigação e o trabalho no campo dos pequenos polícias, dos investigadores, asseguramos a constatação da sua pequenez e incapacidade.
     
      Ao ler-se isto, imagine-se pois a já referida complexidade de um filme que só triunfa porque se baseia num argumento fantástico, coerente. Mas será «Traffic» um filme denúncia, um filme alerta? Sendo um filme importante não me parece que tenha essas características. «Traffic» afigura-se-me muito mais como um documento conformista, a resvalar a investigação jornalística (sendo que esta é uma história de ficção e os peões foram escolhidos a dedo pelo seu carisma, pela sua capacidade de vincarem e transmitirem uma mensagem só por si) quase como uma simples demonstração de como funcionam efectivamente as coisas neste mundo que movimenta milhões e afunda uma sociedade, que ostenta por um lado sumptuosidade e por outro miséria, um mundo doente em que existe uma clara impotência para encontrar o medicamento adequado à sua cura e em que não chegam as mezinhas até agora administradas.
     
      Benicio Del Toro consegue a maior prestação interpretativa deste filme ao protagonizar um investigador policial mexicano de perfil psicológico riquíssimo, dado que possui os vícios e as virtudes normalmente associadas às forças policiais latino-americanas, fala como se de uma personagem de um livro de G.G.Marquez se tratasse e tem uma visão e atitudes perante as coisas muito fria e despudorada de que não abdica em busca do seu objectivo. Michael Douglas consegue um excelente desempenho ao compor um Juiz empossado como máximo líder governamental contra a droga, mostrando um homem simples debilitado afinal pelo drama familiar da sua filha consumidora de 'crack' e heroína. Todo o resto do “cast” é de grande nível destacando-se a gravidíssima Catherinne Zeta Jones como uma inicialmente inocente esposa de traficante, e em papéis muito secundários nomes grandes como Albert Finney, Dennis Quaid e James Brolin.
     
      Tecnicamente o filme torna-se exemplificativo das enormes capacidades de Soderbergh no manejo da câmara, na busca de 'flash-backs' como determinação justificativa de acções a empreender pelas personagens e está repleto de contraste de luzes. Neste particular aspecto é evidente o tom carregado da fotografia em momentos de maior dramatismo e miséria humana, o tom amarelo espelhando o calor e anarquia de um México tórrido e subdesenvolvido, e a claridade dos momentos de pura descrição evolutiva de um argumento posto em desenvolvimento da sua trama. Destaque ainda para a subjectiva apreciação do problema da droga por parte dos diferentes intervenientes no processo, em que se chega a ponderar a insustentável hipótese da polícia ao desmembrar um cartel estar a beneficiar e ajudar outro cartel rival.
     
      «Traffic» de Steven Soderbergh é pois, e em jeito de conclusão, o filme mais sério do ano mas peca por não conseguir imprimir uma dose de emotividade das várias histórias descritas em mosaico capaz de prender ainda mais o espectador, capaz de o levar ainda mais a tornar-se cúmplice do grave problema da droga, daqueles que já o sofreram na pele. Mas, diga-se por ser verdade, esta é uma opção de Soderbergh no seu trabalho, este é o seu cinema.

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