quinta-feira, 14 de outubro de 2010

UM CASAMENTO ATRIBULADO

  


      A FESTA
     
      Procurando muitas vezes abstrair-me de referências técnicas aos filmes que comento por escrito, dado que, como simples espectador que não deseja em absoluto mais que esse estatuto em termos dos filmes e do cinema, me interessa fundamentalmente a história narrada e a forma como esta mexe comigo, é incontornável a necessária referência técnica neste caso particular de «Um Casamento Atribulado». E, curiosamente ou talvez não, faço-o pelas razões opostas às quais seria legítimo enunciá-las. Efectivamente, se filmes há em que o guarda-roupa, a maquilhagem, a fotografia, os arranjos sonoros, os efeitos especiais, etc, se revelam essenciais para determinadas narrativas cinematográficas, neste filme realizado pelo par de actores Alan Cumming e Jennifer Jason Leigh, tudo isso se revela indispensável apenas na forma mais simples e reduzida que permite contar a tal história. É sabido que este filme foi rodado em 19 dias apenas, numa experiência de certo modo invulgar de filmagem com câmaras digitais de vídeo, e são inevitáveis as referências ao conhecido manifesto Dogma 95. No entanto, quer-me parecer que as semelhanças estabelecidas se reduzirão apenas à frugalidade de meios e simplicidade de filmagens. Isto porque existe uma diferença fundamental que para mim é determinante na simpatia que nutro desde logo por “Um Casamento Atribulado”. É que nesta realização o que interessou sobretudo foi incidir a atenção sobre a trama e o trabalho dos actores, não se tratando de modo nenhum de uma manifestação anti-tecnologia ou super produção Hollywoodesca. Mesmo que nos recusemos à ingenuidade de acreditarmos que a redução de custos de produção não tenha tido a sua importância na opção tomada.
     
      Mesmo desenrolando-se numa atmosfera que se vai intensificando de gravidade consoante as coisas vão acontecendo, a verdade é que o ambiente é pesado desde o início e nunca consonante com o desejável numa festa de aniversário que serve de pano de fundo aos acontecimentos. Ainda mais sintomático e real porque realizado por dois elementos pertencentes por direito próprio à sociedade aqui retratada como cínica e hipócrita de modo tão acutilante, este filme pode afinal ser considerado – exactamente por ser realizado por quem é - como um exercício de autocrítica. E não autocrítica no sentido dos próprios actores mas sim no sentido de uma sociedade particular que ajudaram a criar. Isto apesar da crítica aqui construída incidir muito mais sobre a relação de um casal entre si partindo posteriormente para a forma como se relacionam com os que os circundam.
     
      Há no entanto factos que merecem uma referência especial. Nesse âmbito deve realçar-se a espiral neurótica que se adensa onde os momentos das revelações mais ou menos chocantes se dão apenas sob o efeito de um qualquer químico. Como se apenas nesses momentos se libertasse o verdadeiro “eu” de cada um dos protagonistas. Por outro lado, no final, é um acontecimento dramático que vem unir quem está desavindo e ajudar a perceber onde está verdadeiramente quem é importante em cada uma das vivências. Tudo isto nos ajuda a perceber que, longe das luzes e do aparato das câmaras, longe do seu estatuto de heróis, muitas vezes estatuto fabricado sobre uma duvidosa solidez, o actor, por mais mediático que seja, não passa de uma pessoa vulgar, de um ser humano como tantos outros. Alguém que vive num estado de permanente atenção sobre si mas possuidor de uma realidade por vezes dolorosa que o obriga a fraquejar se não a ceder.
     
      “Um Casamento Atribulado”, não é no entanto um filme totalmente conseguido. Mesmo reconhecendo o pulso forte da realização e uma excelente direcção de actores, há pormenores que me desiludiram. Por exemplo a corporização do próprio Alan Cumming de um romancista pinga-amor alvo dos ciúmes e insegurança da mulher. É que ao som da sua voz forte e bem colocada contrapôs-se invariavelmente a sua expressividade gestual, sempre muito mais perto do efeminado recepcionista de hotel que protagonizou na obra-prima de Kubrick, «Eyes Wide Sut», que da personagem que aqui criou. Também Kevin Kline me pareceu muito longe da sua boa forma e não me satisfez a sua composição demasiado tradicional e cinzenta de chefe de família dada a sua condição de estrela do cinema.
     
      Quanto a todos os outros, dado tratar-se de um importante conjunto de artistas de sucesso, não me pareceria muito diferente – em termos do perfil apresentado – se em vez destes ali estivessem reunidas as famílias de uma qualquer sociedade particular de revisores de contas.
     
      Por tudo isto, «The Anniversary Party», no seu título original, parece-me demasiado contido e muito pouco inventivo em termos daquilo que poderíamos designar como a saudável loucura que permitiria alguma satirização das situações desenvolvidas.
     
      Ainda assim, um bom filme, uma intervenção psicológica do cinema na intimidade dos seus próprios protagonistas, e um filme intelectualmente reconfortante.

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