terça-feira, 12 de outubro de 2010

A ÚLTIMA HORA


     



CRÓNICAS DE ASCENSÃO E QUEDA
     
      Ano de 2002, cidade de Nova Iorque, uma história de vida, crónicas de grandeza e decadência. Monty Brogan (Edward Norton) é o arquétipo do delinquente de bom coração. Ele é um traficante de drogas caído nas malhas da DEA em consequência de uma denúncia e tem apenas 24 horas de vida em liberdade até que dê entrada numa cela. Nela irá passar sete longos anos de cativeiro. Para trás ficarão tempos em que se passeou em grande estilo pelos clubes mais exclusivos da cidade, guiou carros potentes, foi temido e respeitado. Agora Monty é um homem abatido, sofrido, e revive em memória os erros do passado apercebendo-se ainda dos perigos que lhe reserva o futuro. No presente consome-o a dúvida. A dúvida de que a namorada Naturelle (Rosário Dawson), a quem ama, possa ter sido responsável pela sua detenção às mãos das brigadas anti-droga. Nestas derradeiras 24 horas ele irá tentar desfazer essa dúvida. E passar algum tempo com o pai (Brian Cox) e com os amigos de sempre que os rumos que tomara para a sua vida haviam afastado de si. Eles são o solitário Jacob (Philip Seymour Hofman) e o seguro de si Slaughtery (Barry Pepper).
     
      «A Última Hora» é desde logo o primeiro filme a ser realizado olhando de frente para o drama que se abateu sobre a cidade de Nova Iorque a 11 de Setembro de 2001. Apesar disso, deve esclarecer-se que o argumento do filme foi escrito antes dos referidos acontecimentos, baseado num livro da autoria de David Benioff. Foi o realizador Spike Lee que resolveu promover alterações ao guião da película introduzindo-lhe o drama que entretanto se abateu sobre a sua cidade. E em boa hora o fez já que a profunda reflexão que na fita um ser humano leva a cabo depois de se ver atirado para uma situação extrema, sugere inúmeras conotações com a então realidade nova-iorquina. Sendo um realizador cujos filmes se caracterizam pela importante vertente interventiva relativamente à sua sociedade, e à disparidade multirracial de que é composta, Spike Lee surpreende desta vez pela contenção reivindicativa com que ergueu esta obra. Na verdade, o realizador negro trabalha a ficção de um modo tão profundo e sensível que a faz confundir-se com a crua e dura realidade. E assim este é um drama intimista que decorre invariavelmente de modo hipnótico e onde a sensação de tristeza se mantém em permanência.
     
      A realização de Lee é perfeita, a fotografia é idealizada como se em reflexo do turbilhão de emoções que varre as personagens, a música é poderosa. A par do referido, pelo filme passeiam-se ainda actores fantásticos. A começar por Edward Norton corporizando alguém sensível mas duro, tão capaz de viver da miséria alheia como de exercer sobre os outros a justiça e a bondade. E depois há ainda esse extraordinário actor, esse eterno secundário que vem emprestando talento a personagens sempre isoladas, constantemente tolhidas pela sua diferença; ele é Philip Seymour Hoffman. Dois destaques do filme, dois momentos inolvidáveis: a emocionante visão desde a janela de um apartamento do local onde outrora se ergueram as desditosas Twin Towers e o instante fantástico que Norton nos proporcionou frente a um espelho quando a sua personagem culpa todos os que circundavam o seu mundo pelos males que lhe sucederam quando o único culpado só podia ser ele mesmo. Momentos que, só por si, valem um filme. Momentos de pura magia, da mais pungente poesia.
     
      Este, meus caros, não é filme para levar 5 estrelas no imediato. Não, não quero que assim seja. Esse é um tributo que prestarei mais tarde, um prazer que desejo recuperar um dia. Um dia quando o passar do tempo legitime o seu inquestionável estatuto de obra-prima. Por agora o que fica é apenas a minha convicção da solidez desta obra, a certeza de que o cinema nela contido é sério de mais para simples classificações por impulso emocional.

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