quinta-feira, 14 de outubro de 2010

VIDAS PRIVADAS





      O INSUSTENTÁVEL PESO DA DOR DE ALMA
     
      «In The Bedroom», de Todd Field, o antigo estudante de medicina que vira pianista no último filme e obra-prima de Kubrick, «Eyes Wide Shut», é sobretudo um filme que brilha pelo irrepreensível trabalho de “casting” feito. Um «casting» que tem em conta a pequena localidade pesqueira do estado do Maine, os rostos das gentes simples entre um sorriso de cumprimento a alguém num qualquer passeio da cidade numa sexta-feira à tarde, uma gargalhada sincera e despreocupada no churrasco de sábado à tarde, um rosto fechado pelo olhar mais atento e preocupado no regresso às tarefas profissionais na segunda-feira de manhã. Um trabalho de «casting» de paralelismo muito familiar em outra obra maior que é o filme de David Lynch, «Uma História Simples».
     
      Mas um bom trabalho de «Casting» de nada vale caso não exista igualmente atitude. E atitude significará aqui falar-se em desempenho dramático relevante. E a atitude, essa, está claramente consubstanciada nas interpretações sem mácula de Sissy Spacek e Marisa Tomei, sem dúvida, mas fundamentalmente num espantoso Tom Wilkinson. E se estamos habituados a admirar um actor pela corporização de alguma forma singular que faz de determinada personagem, em «Vidas Privadas» somos obrigados a essa mesma admiração pelas razões opostas. Pela contenção e pela complexidade dramática numa faceta de maior simplicidade. Porque nestes actores reconhecemos as gentes que «In The Bedroom» quis retratar.
     
      A história passa-se, como já foi afirmado, num pequeno lugarejo de pescadores no estado do Maine (nordeste dos EUA, junto ao Canadá) entalado entre o frondoso arvoredo das florestas circundantes e as águas do mar. Frank, jovem universitário de férias e filho de Matt (Tom Wilkinson) e de Ruth (Sissy Spacek) inicia uma relação amorosa com Natalie (Marisa Tomei), uma mulher já mãe e alguns anos mais velha. Esta relação não é vista com bons olhos por todos e muito menos pelo separado mas ainda marido de Natalie, indivíduo de maus fígados e pertencente a uma poderosa família da cidade.
     
      Um dos pormenores interessantes desta realização de Todd Field, a partir de uma pequena história (15 páginas) de Andre Dubus, «Killings», é que nas cenas iniciais nada indicia o drama sobre o qual se construirá o filme. E, mesmo depois de se perceber a gravidade da abordagem, o filme mantém um intenso clima de permanente curiosidade sobre o que se segue.
     
      O facto de se afirmar que «Vidas Privadas» se baseia na simplicidade quer apenas dizer que as coisas acontecem da forma mais credível possível e, trunfo muito importante, mesmo aquilo que muitas vezes é levado ao extremo da intriga a roçar alguma impossibilidade, aqui é feito na justa medida da personalidade das pessoas de vivências simples que levam a cabo essas tarefas. Por outro lado, o filme vai mais longe do que aquilo que eventualmente se poderá perceber num olhar mais desatento. É que existe nele uma construção de emoções bastante importante porque aborda temáticas fundamentais relativamente ao equilíbrio psicológico perdido e do qual se busca a retoma. Falamos da aflição sentida perante uma perda asfixiante, falamos também dos fantasmas que a partir daí nos povoam a mente e impossibilitam a desejada tranquilidade, e falamos ainda da redenção que julgamos possível através da vingança. E isto em grande medida porque alguém, um casal, suportou a sua vida noutro alguém, um filho. E que fazer depois com essa necessidade de amar quando desaparece o objecto do amor? Pior se transformam as coisas quando perdemos determinado controlo ou quando deixámos de poder transferir os nossos sonhos para outrém. Será que essa necessidade de sentir se transporta, como alvo e em forma de ódio, para o ser que terá provocado a tragédia?
     
      «Vidas Privadas», recentemente galardoado nos «Globos de Ouro» e vencedor do Festival de Sundance, é sem dúvida uma obra relevante que não busca artifícios técnicos para se impor, apesar da sua excelente fotografia. Enriquecido pela sua linearidade e genuína pureza narrativa, tem nas interpretações dos actores um dos seus maiores méritos. Talvez que, numa perspectiva pessoal, se pudesse ter ido um pouco mais longe na banda sonora sem que se perdesse o impacto realístico que se pretendia e da forma optada se buscou.
     
      Destaco como momento ímpar de todo o filme a imagem de Matt deitado na sua cama. Nele não existe qualquer sensação de alívio ou de redenção. Em Matt ficou ainda o desespero, a intranquilidade, a confusão de sentimentos.

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