quinta-feira, 14 de outubro de 2010

VOU PARA CASA

  


JÁ EM CASA
     
      Vim para casa e deparei-me perante a intangibilidade do cinema de Manoel de Oliveira naquele que deveria ser o seu habitat natural, a sala escura de écran gigante onde se projectam luzes feitas imagens. Não que o cinema saído da mente do velho e respeitado realizador seja de difícil apreensão, não que este «Vou para Casa» não seja um objecto cinematográfico menos preso à habitual pesada formalidade do seu cinema testemunhada nas de tão correctas muito pouco naturais poses dos seus actores e nos diálogos sempre tão superiormente adequados a cada situação. O que aconteceu, por estranho que pareça, é que quanto mais me embrenhava na memória recente das imagens do filme mais me permitia aproximar à empatia que de certa forma me invade no momento mas que quase nunca senti durante o seu visionamento na sala. Esta sensação leva-me a questionar a capacidade de sedução do espectador por este «Vou Para Casa» já que, como em seguida procurarei demonstrar, o considero irrepreensível em termos da sua qualidade criativa.
     
      «Vou Para Casa» não é mais que uma incursão psicológica à mente humana aqui realizada através de uma viagem muito intimista na pele de um homem confrontado com a irreversibilidade de ter que colocar um fim na sua até então brilhante carreira de actor ou, como prova para isso busque-se o título desta obra retirado da judiciosa frase pronunciada pelo protagonista, de como há que se possuir a capacidade para se perceber que essa hora chegou (felizmente para muitos amantes de cinema, uma hora que ainda não terá chegado para Oliveira).
     
      O que salta desde logo à vista, é a prodigiosa esquematização idealizada por Oliveira para este ensaio filosófico/nostálgico, para esta espécie de prelúdio do fim. Gilbert, o actor feito veículo de uma teoria, representa logo no início uma peça de Teatro onde protagoniza um Rei prostrado pelo confronto com a indesejada mortalidade. Isto para, terminada a peça e logo em seguida, se abater a tragédia sobre si mesmo com o anúncio da morte da mulher, da filha e do genro num acidente de trânsito. É o prenúncio do fim de uma alma fustigada e não será por acaso que “A Tempestade”, de Shakespeare, é outra peça teatral inserida no filme. E a magia que o actor encarna nesta peça só já a vai encontrar no ente querido que lhe restou, um pequeno neto, e nos pequenos prazeres da vida. Seja no banal acto de tomar um café no sítio habitual (muito disputado, diga-se), na contemplação de um quadro ou no pequeno luxo da compra de um par de sapatos cujo elevado preço é obstinadamente referenciado.
     
      Gilbert envelhecera, atraiçoa-o a memória num pequeno papel numa adaptação do cinema à obra de Joyce, «Ulisses». Ficou-lhe no entanto a dignidade para se aperceber de tal e pronuncia gravemente a expressão “vou para casa”. E vai para casa derrotado sem conseguir abandonar a ridícula caracterização de homem mais novo que o filme exigia. Vai para se entregar ao pequeno neto que o acolhe com uma singular expressão de compreensão e enfrentar os dias do fim. Do seu fim.
     
      Pese embora a estrutura perfeita, Oliveira transmite-nos não apenas a melancolia do percurso em espiral invertida da sua personagem (melancolia obrigatória neste caso, diga-se) como não consegue evitar dar uma imagem muito pouco colorida da vida de um actor por detrás do pano, por detrás das câmaras. Saliente-se ainda a atitude de pasmo do mesmo ao deparar-se com as enfermidades dos dias de hoje (vide a cena em que é assaltado) e mesmo com a sua incapacidade de adaptação às novas exigências e realidades do cinema actual (exemplificada na dificuldade em aceitar determinados papéis recusando fugir àquilo que designa como o código deontológico da sua profissão).
     
      Resta saber se, tal como no som do realejo com que se inicia e termina a fita, nas cenas de teatro ou no gosto pela observação de uma pintura – para não falar em outros elementos paralelos à vida do realizador aqui inseridos – estas inadaptações do actor idealizado não serão afinal testemunhos de inadaptação do próprio artífice do filme.
     
      Resta saber ainda, atrevo-me a questionar, se não será esta inadaptação que estará na génese de uma certa incapacidade - que eu alego – do cinema de Oliveira em seduzir o espectador com a projecção dos seus filmes, mesmo reconhecendo este a beleza nostálgica de um argumento arquitectado cinematograficamente de forma muito sábia e competente. E o que acabei de afirmar pode até parecer um contra-senso mas, intimamente, eu sei que não é. Soube-o antes de vir para casa ao ver este filme na sala escura de écran gigante onde se projectam luzes que se transformam em imagens. Ao dar-me conta da resistência emotiva que então senti. Ao olhar agora e de longe a sua discreta beleza

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