domingo, 10 de outubro de 2010

'R XMAS - NOSSO NATAL

  

      O NATAL DE 1993 EM NOVA IORQUE
     
      O cinema de Abel Ferrara desde sempre dividiu opiniões entre a mais clara desaprovação e a sincera e rendida homenagem. Realizador de peculiar linguagem cinematográfica, a ténue linha sobre a qual a sua filmografia se edifica ora se confunde com a denominada série B, ora parece percorrer o universo dos chamados filmes trash. Para quem se senta na sala de cinema disposto a revisitar o cinema do cineasta, as primeiras imagens de «’R Xmas – O Nosso Natal», parecem sugerir a mudança de registo por parte de Ferrara. As imagens mostram uma peça de teatro interpretada por pequenas crianças, os pais a aplaudirem e mensagens moralistas a serem pronunciadas. Perante este cenário, onde até faltam as presenças quer de Harvey Keitel quer de Christopher Walken – os actores fetiche do realizador, o espectador sentir-se-á forçosamente órfão das violentas cenas de crime, do sexo, das drogas, do culminar fatal de vinganças alimentadas a fel tão habituais nos seus filmes. Mas não. Neste filme o excêntrico realizador acabará por se mostrar cada vez mais um anarquista do mundo que pacificamente adquirimos como nos é oferecido sem o questionarmos pela rama quanto mais pela essência.
     
      No exercício narrativo que se evidencia, mantém-se neste filme a costumada oposição entre o vício e a moral mas, contudo, é dado perceber ao espectador que os estatutos não fazem as pessoas e que o que estes sugerem pode muito bem ser radicalmente distinto daquilo que efectivamente são. Ela (Drea de Matteo) é porto-riquenha, ele (Lillo Brancato) é dominicano. Ambos formam um casal feliz e aparentemente bem inserido na sociedade nova-iorquina apesar das suas origens. Têm uma filha a quem incutem valores socialmente louváveis. Marido e mulher gerem um negócio de família de forma muito profissional e honrada. O curioso da questão é que esse negócio consiste no tráfico de droga que controlam em todos os canais de distribuição. É o processo, muito ao estilo de Ferrara, de transfiguração do banal em algo exótico e inesperado. Voltando à linha argumental, tudo se complica quando Ele é raptado – os seus nomes não importam, nunca os saberemos porque aqui trata-se mais de escalpelizar o que se É e aquilo que se FAZ. A partir do rapto o filme entra num toada empírico-filosófica que coloca em causa todas as certezas que as acções anteriores sugeriam relativamente aos intervenientes. Nomeadamente é quando, já perto do final do filme, é revelada a identidade dos raptores que questionamos a bondade de uns e de outros independentemente do seu percurso oficial. E social.
     
      Em todo o filme são igualmente evidentes as referências religiosas do cinema de Ferrara que, neste caso, funcionam mais como se de uma espécie de exorcismo e redenção relativamente às actividades marginais executadas pelas personagens se tratasse. Por outro lado, o realizador faz uma acentuada intervenção no mundo da política nova-iorquina ao expor as deficiências e problemas da sociedade da cidade em 1993, época de finalização da presidência de David Dinkins na câmara. Mas o que mais se destaca em «’R Xmas – O Nosso Natal», é a sobriedade da narrativa, a ambiência de serenidade em que um mundo normalmente tido como pérfido e declaradamente marginal nos é apresentado. Um mundo apresentado num insólito cenário de normalidade e honradez e, ainda para mais, em registo familiar. E os anseios e temores dos seus elementos parecem comuns a tantos outros. E é Natal. O Natal de Ferrara. Feliz Natal Abel Ferrara.

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