quinta-feira, 14 de outubro de 2010

ZATOICHI




      O MESTRE TAKESHI ZATOICHI KITANO
     
      Takeshi Kitano tem vindo, filme atrás de filme, a cimentar a sua condição de cineasta de culto e aqui completa-se mais uma muralha nessa fortaleza de devoção. Este «Zatoichi» é o primeiro filme de época do realizador Takeshi Kitano que, na sua faceta de Beat Takeshi, também encarna a personagem principal da história. Essa baseia-se num herói lendário que o cinema, e também uma série que a televisão nipónica exibiu desde os anos sessenta aos oitenta, tornou num dos mais populares do país do Sol nascente. Zatoichi é uma espécie de alma solitária que erra sem eira nem beira, um homem cego que à primeira vista não deixa perceber a sua valentia e mestria no uso do sabre, um justiceiro sem lar. Verdadeiro carrasco sanguinário dos maus em defesa dos bons, Zatoichi é no entanto um ser distante no trato e telegráfico nas falas que ganha a vida ao jogo (os heróis também têm vícios) e como massagista. Mas mesmo sendo o seu primeiro filme histórico, aquilo de que Kitano não abdicou nesta sua realização foi da violência tão constante nos seus universos de ‘yakusas’. E aqui vale mesmo tudo e até tirar olhos se fosse caso disso mas não o é porque Zatoichi não precisa deles para vencer os seus combates. Ele é, como já se disse, cego. Ou não será? Lá mais para a frente no filme, entre a desordem das fantásticas coreografias de luta, Kitano encarregar-se-á de lançar a confusão também sobre esse pormenor.
     
      O filme inicia-se desde logo com Zatoichi a sangrar quatro ou cinco marginais que se usam da inocência de uma criança para lhe armarem uma cilada. O resultado não é bonito de se ver e no final da luta sobram pernas e braços decepados ao redor do samurai massagista. Claro que a filosofia oriental marca presença numa obra cuja acção decorre em pleno século XIX. Durante os jogos de dados em que entrará, já na aldeia seguinte no seu percurso, poderemos perceber como a dita filosofia explica o modo como alguém que não vê acaba por enxergar melhor que os que estão na completa posse das suas faculdades físicas e orgânicas. Por coincidência, ou talvez não, a aldeia vive atormentada pelo gang de Ginzou (Ittoku Kishibe) um assassino e tirano à escala regional que tem no samurai Hattori (Tadanobu Hasano) o seu maior trunfo para impor sevícias e extorquir bens à população. Entretanto, duas jovens ‘geishas’ surgem no povoado provocando efervescência entre os locais. Mais à frente na fita, elas irão ser peças fundamentais para ajudarem à acção de Zatoichi contra o inimigo público e também para o espectador ficar a saber que a pedofilia já era uma moléstia no Japão do Séc. XIX. Aos poucos, na narrativa tudo se conjuga para a luta final a travar entre Hattori e Zatoichi.
     
      É incontornável a conclusão relativa ao carácter burlesco atribuído ao filme pela realização de Kitano. Apesar de não ser uma novidade total, basta ver o modo como se desenvolve a violência em obras da sua filmografia anterior, é um Kitano mais excêntrico que nunca o que observamos em «Zatoichi». E esse era desde logo um objectivo a atingir por si quando optou por criar um herói popular já existente no imaginário popular mas em oposição física e psicológica àquilo que era sobre ele conhecido. Aliás, provando-o, uma das exigências do cineasta nipónico ao aceitar pegar neste projecto foi a de lhe ser dada total liberdade criativa relativamente à história. E essa liberdade estendeu-se mesmo a questões formais como é disso sinal o final belo mas extravagante que, diria, entra até em colisão com a estrutura narrativa anterior. É também aí que Kitano presta homenagem ao folclore tradicional do seu país tal como já anteriormente nos deixara um tributo ao mestre Kurosawa e à sua obra-prima «Os Sete Samurais». Realce-se ainda a composição de Zatoichi por Beat Takeshi: o constante semicerrar de olhos, os trejeitos com os lábios, o riso curto e seco e a agilidade de movimentos que nunca é acompanhada do olhar são de um pormenor de representação assombroso. Resumindo, é como se o Kitano actor e o Takeshi realizador se fundissem na criança que é Takeshi Kitano transformando-se o cinema no seu brinquedo de eleição. E é muito estimulante ver Kitano a brincar ao cinema. Veredicto final: um invulgar mas brilhante filme, este «Zatoichi» de Takeshi Kitano.

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